Construindo o imaginário infanto-juvenil – entrevista com Ana Pacheco

Ana Pacheco estudou Comunicação Social com o objetivo de ser documentarista, depois trabalhou como educadora e produtora, até se encontrar no roteiro. Desde então, escreveu séries e longas para diferentes públicos, mas com foco no infanto-juvenil, como Gaby Estrella (2013-2015, Canal Gloob) e Ernesto, O Exterminador de Seres Monstruosos (e Outras Porcarias) (2017, TV Brasil), da qual ela também foi criadora. O que mais lhe atrai na escrita de obras para crianças e adolescentes é o fato de que “(…) elas falam sobre um momento crucial na formação das relações de amor, de amizade, de sexo. Eu acho muito interessante olhar para essas obras e pensar que imaginário elas constroem em torno disso, e como podemos alterar esse imaginário.”

Alice Name-Bomtempo: Como foi a sua aproximação com o cinema e o roteiro?

Ana Pacheco: Eu sempre trabalhei na área de audiovisual, por muito tempo ligada à educação. Desde oficinas de formação de linguagem crítica do audiovisual, com professores e alunos, e depois trabalhei na MultiRio, que é uma produtora de conteúdo ligada à Secretaria da Educação. Mas, na verdade, tudo começou comigo indo estudar para ser documentarista. Fui estudar comunicação, porque estudar Cinema era um salto muito no escuro, era bem a época que tinha acabado a Embrafilme. Mas o meu desejo sempre foi cinema. Então eu fui trabalhando com educação e também como produtora, assistente de direção, mas aí fui descobrindo que eu não gostava desse ritmo do set. E eu pensei: cara, na verdade, o que eu me identifico mais é com o conteúdo. Foi a partir daí que eu comecei a pensar no roteiro, isso em 2004, 2005. Não tinha tanto espaço no mercado, mas eu comecei a considerar esse caminho, por eu gostar de pensar e de conceber as coisas, mais do que de realizar. Ainda hoje, eu gosto muito de escrever e tal, mas o que me dá mais tesão de tudo é criar. Criar o universo, pensar essas bases, e depois ok, escrever também e realizar. Mas é ali que tá o meu motor maior. Aí comecei a pensar possibilidades e apliquei para algumas universidades na Espanha para fazer mestrado em roteiro e passei com uma bolsa do programa Ibermedia. Então eu fui fazer esse curso teórico-prático de um ano específico pra roteiro de cinema em Valência, e foi ótimo. Aí, já no final do curso, aconteceu uma coisa interessante. Enquanto eu esperava o Ricard, o técnico audiovisual da faculdade, fazer umas cópias de uns DVDs pra mim, ele virou e disse: “Ana, eu acho muito legal isso aí que vocês tão estudando, cinema, bonito e tal, mas o futuro tá nisso aqui ó!”. E apontou para um DVD de Six Feet Under (2001-2005, Alan Ball). Ele disse: “O futuro tá aqui, cara. Aqui que tá vindo a inovação, a inovação de linguagem”. E eu pedi para ele me fazer umas cópias. Assim, eu via série? Ah, tinha visto alguma coisa, e tal, mas aí eu comecei a ver esses DVDs do Six Feet Under e fiquei: “caralho, o Ricard tinha razão!” Ele tinha que ser o professor do curso, cara! E foi aí que eu comecei a entrar nesse universo de série, comecei a ver muito. E dei um curso sobre roteiro de séries de TV no Uruguai, onde também mergulhei nesse universo e aprendi muito com as referências dos meus alunos.
Quando eu voltei pro Brasil, voltei a trabalhar na MultiRio, e, nisso o mercado começou a crescer. Eu tinha um projeto de um livro que eu tinha lido no Uruguai, o Ernesto Exterminador de Seres Sobrenaturais e Outras Porcarias, e eu queria fazer um filme dele, porque ele é super cinematográfico. Isso foi em 2011, 2012, no começo da lei da TV Paga. Aí, teve um edital da TV Brasil para apresentar projetos para desenvolver pelo PRODAV e eu falei com a Bella [Faya], que depois virou minha sócia. A gente adaptou o projeto para o formato de série, porque achávamos que super funcionava também, e fomos selecionadas em 2012. As filmagens foram em 2015, e a série só foi ao ar em 2017. A gente sabe, esses tempos, às vezes, são assim. Aí, comecei a fazer uns trabalhinhos muito incipientes, bem pequenos, e nisso fui chamada para integrar a equipe do Gaby Estrella. E quando a gente tá começando… acho que a gente nunca sabe pra onde os projetos vão nos levar. Eu tinha feito um outro projeto para o mesmo pessoal que até hoje não saiu, mas me rendeu a indicação pro Gaby. As coisas não são tão diretas assim. Então eu fiquei trabalhando no Gaby por um ano, um ano e meio… foram três temporadas.

Alice: E é coisa para caramba, né? A primeira temporada tem 52 episódios de 26 minutos! Como é isso?

Ana: No começo, éramos eu e a Carina [Schulze], e iam ser 26 episódios “só”. Primeiro a gente pensou o todo, tipo o “arcão” da temporada. Depois, a gente ia dividindo de cinco em cinco, porque a gente sabia que ia ao ar diariamente, então a gente tinha arcos semanais. Ou seja, a gente foi do grande pro pequeno. Isso só nós duas. Tinha um quadro onde a gente ia colocando o arco da semana e uns quadrinhos com os episódios diários. Me ajudava muito pensar o título de cada episódio como unidade temática. Alguns eram e outros não, mas serviam para iniciar. Então você vai destrinchando esse negócio que parece um mastodonte e ele passa a ser mais palatável. A gente tem um arco semanal onde vai acontecer isso, isso e isso. Aí a gente trabalhava semana a semana abrindo blocos de cinco. Primeiro, aprovavam as sinopses, e, em seguida, fazíamos a escaleta. Aprovada a escaleta, íamos pro roteiro. E, quando a gente tava escrevendo o 19 ou 20, veio o canal falando que agora iam fazer 52 episódios. Acho que foi porque já estavam com toda a estrutura armada, então ia ser mais barato fazer de uma vez só, confiavam no projeto. Assim, vieram mais duas roteiristas e a gente suavizou o final, fez tipo um mid-season,¹ abriu mais um arco, colocamos uma nova vilã e tal.

Alice: Engraçado que, na maioria dos formatos, o mid-season seria um quarto da duração do Gaby, né? Mas você acha que funcionou de qualquer forma?

Ana: Sim, funcionou. A gente ficava diariamente num clima de trabalho quase de novela. A gente ficava lá, escrevia lá, vinha a produção, e tava filmando, né. Na segunda temporada foi mais complicado ainda, porque eles abriram duas frentes de gravação. Era uma equação de segundo grau. Encaixar as tramas dividindo o elenco e as locações que tinham que ser gravadas simultaneamente.

Alice: E aí todas essas regras comprometem o desenvolvimento dramático, né? Vocês também escreviam enquanto filmava?

Ana: Sim, mas não era que nem novela de ficar mudando em função do público, era mais de ver coisas que tavam funcionando ou não no set, que eram alteradas, muitas coisas aconteceram nesse caminho. Só sei que a gente ia todo dia lá pra sala de roteiristas e ficava um período. Sempre escrevendo, ou revisando, ou abrindo novas escaletas… e a gente foi meio encontrando ali uma dinâmica e uma metodologia.

Alice: Que metodologia?

Ana: Na primeira temporada, tinha muito uma coisa de todo mundo meter a mão no texto, nós quatro, e a Carina e eu fazíamos a redação final. Na segunda, quando alguma alteração era necessária, a gente voltava para quem tinha escrito. E também repetimos a metodologia de ir do grande pro pequeno – que fizemos na primeira – mas dessa vez a gente sabia desde o começo a quantidade de episódios. Foi uma puta escola, em vários sentidos. Um, por essa coisa da musculatura de sair escrevendo; depois, por essa interlocução com a produção, por aprender a ir resolvendo a história com todas essas questões de duas frentes, ator que fica doente e sei lá o quê. E pô, escrever 100 episódios e depois ver no ar é incrível. Na segunda temporada, a gente já conhecia melhor os personagens, os atores, já ia entrando mais na boca do personagem e isso é muito legal.
Já a experiência do Ernesto foi outra. O que super influenciou a gente foi a locação, quando a gente descobriu a casa onde a gente ia gravar. Era uma casa incrível, que nos inspirou a criar situações e histórias sobre ela. Além disso, tínhamos um domínio total da locação.

Alice: Foi um fator de produção que ajudou na escrita, mais do que limitou.

Ana: Sim, mas eu tô muito acostumada a trabalhar com limitação, sabe. Claro que, às vezes, dá um aperto de você revisar seu roteiro pra “piorar” pra dar conta. Mas, às vezes, tem casos em que os roteiros estão meio complicados, e eles ficam melhores quando a gente reescreve pensando em soluções narrativas para questões de produção. E eu acho que isso faz parte quando você trabalha com produção independente aqui no Brasil.

Alice: Conta um pouco mais da experiência com o Ernesto.

Ana: Escrevemos eu e a Bela, e a gente era produtora também, como showrunners. Mas isso foi muito difícil. Foi por coisas assim que, no fim das contas, eu decidi abraçar o trabalho de ser roteirista mesmo, porque, quando você produz, o primordial é não sair quebrado. Claro, é também tentar conseguir o melhor pra história, mas sem nunca sair quebrado. Mas como eu venho desse caminho da produção, eu fiquei condicionada demais a pensar dessa forma, de idealizar séries baratas, com poucas locações, mais viáveis. Mas eu também fiz um exercício de me descondicionar disso um pouco e me permitir viajar mais nas minhas histórias, porque acho que acaba atrapalhando. Porque a produção é sempre a urgência. O que é melhor? Você quebrar ou o roteiro não ficar tão bom? O roteiro não ficar tão bom. Esse é o lado negativo. Mas, por outro lado, não dá pra ser muito no chute, é importante o roteirista ter uma ideia do quanto a série que ele quer fazer precisa, o que é preciso adaptar se tem um orçamento x, etc.

Alice: O que mais te move em escrever para crianças?

Ana: Na verdade, o público para o qual eu mais amo escrever é o adolescente. Mas é foda, porque não tem janela. É um público que consome muito, mas aqui no Brasil a gente tem pouca janela. MTV é 18-24. Gloob é infantil. TV Cultura, TV Brasil e Cartoon Network um pouco, Nick vai até 12,14…. então é complicado. Netflix talvez melhore isso um pouco. O que me interessa muito nesse público é a formação. Eu acho que, como roteirista, a gente tem uma responsabilidade, porque a gente está trabalhando com o imaginário. Aí, a partir da visão de mundo em que eu acredito – que é humanista, de tolerância -, eu quero participar da construção desse imaginário. Óbvio que nem sempre você consegue colocar tudo que você gostaria, mas eu tento encontrar uma relação pessoal, algo em que eu acredite, dentro de qualquer projeto que eu pegue. É difícil que seja 100%, até porque a gente trabalha com encomenda – e mesmo quando é o seu projeto, tem limitações. Mas acho que sempre dá pra você trazer uma camada a mais de profundidade, uma camada a mais de densidade, de sensibilidade. Eu acho que a gente, como roteirista, costuma ser muito cínico. E por isso que eu gosto de trabalhar com o universo infanto-juvenil. Porque nele é mais aceito você não ser tão cínico.

Alice: Mas como assim “cínico”?

Ana: É que como roteirista você sempre tem que ter uma pegada engraçadinha, tem que ter uma sacação, não pode ser óbvio, não pode ser muito emotivo…

Alice: Ah, tipo regras do que seria um “roteiro sofisticado”.

Ana: Sim, exatamente! E eu falo pensando no que eu pessoalmente tento colocar. Eu vejo várias séries gringas e adoro, e falo “nossa, olha essa resposta que o cara deu, olha essa fala, que foda”, ou mesmo coisas mais violentas, que você acha “uau, incrível aquela cena”. Mas a verdade é que eu, se eu pudesse, eu não faria nada violento. Nada que fosse meio escroto com outro personagem… eu sei que soa banal. Eu sei que os conflitos e a crueldade, tudo isso tá dentro da gente. Mas quando eu tô construindo imaginário, eu gosto de trazer uma visão mais “cor de rosa” da vida, usando um termo bem escroto. Uma visão mais otimista. E essa visão otimista não cola com o público adulto. E claro que nem sempre faz sentido ter essa visão, mas eu tento trazer alguma coisa. Porque vem de algo meu. Eu acredito nas pessoas. Claro que elas são babacas também, e mentem, e são escrotas, e tudo isso faz parte. Mas isso me interessa menos quando eu tô construindo um imaginário. E isso me atrai no público infanto-juvenil também, porque se permite ser mais fofo, por assim dizer. E eu tenho essa visão otimista de que, ao trabalhar com esse público e trazer valores bacanas, você tá ajudando a construir esse imaginário. E com o adolescente eu acho mais bacana ainda, porque ele já tem um amadurecimento que te permite entrar numa sofisticação maior, e é um momento da vida que você tá questionando muitas coisas. Então tem uma resistência, mas tem também uma abertura a ouvir e construir.

Alice: Quando a gente tá escrevendo para adultos, nós, roteiristas também adultos, temos uma facilidade maior de pensar a identificação que a obra vai gerar. Como é pensar essa identificação com um público infantil ou adolescente?

Ana: Quando a gente tava escrevendo Gaby, um dia a gente foi na escola do meu filho para ouvir as crianças falarem. Então, eu acho que tem uma parte grande de observação. Também pensei muito a partir dos meus filhos e de lembranças do crescimento deles. Mas, no fundo, no fundo, eu ainda tenho 15 anos. Ainda consigo me conectar com esse lugar da adolescência. E também tem um outro lado meu que ainda tem 7. Eu acho que tem muitas sensações da adolescência que continuam parecidas mesmo com 20, 30 anos de diferença. Eu vejo isso conversando com os meus filhos, amigos dele, a namorada. É claro que as questões passam por outros lugares, como a tecnologia. Não tinha internet na minha adolescência, mal tinha celular, era uma outra história. Mas as sensações, as questões, esse sentimento de não pertencimento, de buscar a sua identidade, eu acho que é bem parecido. Então é muito engraçado, porque eu tenho esse lugar muito vivo dentro de mim. Na adolescência é muito comum você querer fazer parte de um grupo, mesmo também não querendo se encaixar. No fim das contas você vai vendo que todo mundo tem dentro de si essa profundidade. Quando você olha um grupo por fora, todas as pessoas se parecem muito. Mas se você se aproximar… você encontra outras coisas. No fundo, todo mundo só quer ser amado, aceito e admirado. Se você for ver, nas relações em geral, eu acho que são variações sobre esse tema na adolescência. Depois você vai amadurecendo, aprendendo, ganhando outras ferramentas.

Alice: Aí pensando mais em séries infantis. Eu sinto que tem muita coisa que eu vi na minha infância que hoje jamais seria produzido, obras mais malucas e violentas, tipo A Vaca e O Frango (1997-1999, David Feiss), Papaléguas (1949, Chuck Jones), CatDog (1998-2005, Peter Hannan)… Acho que o conteúdo dessas séries mudou muito e muito rápido. Como você vê essas mudanças?

Ana: Com certeza tem coisas que já não cabem, não só na produção infantil mas também na adulta… ainda bem. Acho que teve e tá tendo uma mudança rápida de olhar sobre essas coisas, uma conscientização geral, alguns conceitos também estão viralizando, meio que com a mesma rapidez que viraliza um vídeo. Esses movimentos, #MeToo, e tal. E é muito doido porque o ciclo de produção de audiovisual aqui no Brasil é longo. Desde que você tem uma ideia até filmar e ir ao ar… Um conteúdo pode ficar meio obsoleto nesse tempo, se não ficar muito antenado. Com a gente aconteceu uma situação no Ernesto que, embora tenha revelado um racismo que a gente não tinha identificado, a forma como a gente conduziu acabou sendo um aprendizado. Cada episódio era uma criança assustada por um monstro, então ela chamava o Ernesto pra resolver. Nesse episódio, era o monstro do cabelo, um menino que não gostava de cortar cabelo, ficava com piolho, etc. E pra gente tava ok. E era um menino negro, uma família negra. E quando a atriz que ia interpretar a mãe do menino leu, ela falou “Olha só, eu não vou fazer isso porque aqui tem uma conotação racista.” E a nossa primeira reação foi “Mas racista? A gente?” Ficamos em choque. Depois fomos conversar melhor e ela apontou: por que que era justamente um menino negro com a questão do cabelo e do piolho? E a gente entendeu e a agradeceu muito por falar isso, a gente não tinha percebido. Então mexemos no roteiro, trocamos, levamos a família negra para um outro episódio e resolvemos a questão. Óbvio que não era intencional, mas era o que tava sendo construído. Então ainda bem que ela apontou. E questões como o racismo e o machismo, que são estruturais, sempre se revelam em mais e mais camadas. É muito bom essa conscientização estar indo muito rápido. Isso fatalmente afeta como o conteúdo é produzido. Às vezes tem essa coisa de que “o mundo tá ficando chato.” “Poxa, gente, não pode mais ter violência gratuita em animação infantil? Sacanagem!”. É, não, não pode. Vamos usar essas cabecinhas pra pensar em outra coisa. “Ah, poxa, não posso mais fazer piadinha sexista em animação infantil” Não. Vamos pensar outra coisa. “Não dá mais pra fazer piada racista?” Não. Por que? Só dá pra construir humor assim? Agora o desafio é outro, a gente tem que pensar em que humor a gente vai construir. Eu vejo com bons olhos essas mudanças. Não acho que isso vá limitar a criação. A gente tem que evoluir como sociedade. E a gente tem que ter o nosso limite, que são direitos humanos, respeito e tolerância. Então se tem uma pessoa que fala que aquilo ali tá desrespeitando, eu acho que a gente tem que ouvir. E então quebrar as nossas cabeças pra criar coisas interessantes sem violência gratuita, sem sexismo, sem racismo, sem machismo. O desafio tá posto. Aceitam o desafio? Será que ainda dá pra assistir, por exemplo, Papaléguas? Sei lá, acho que dá, tudo bem. Mas agora, será que ainda dá pra você produzir hoje um Papaléguas? Acho que talvez não dê. E talvez chegue um momento que não dê mais para assistir.

Alice: Como você vê a representação da criança e do adolescente no audiovisual?

Ana: Acho que tem uma tendência a estereotipar tanto a criança quanto o adolescente. A criança ou é – falando sem fazer uma super análise – meio gênia, super inteligente, ou é um ser meio irritante. Acho que tem essa perspectiva da criança como algo que atrapalha o universo do adulto… E acho que isso tem a ver com um não reconhecimento do lugar da infância, e também com a estereotipação da maternidade, que costuma ser retratada de forma ou muito idealizada ou muito terrível. Vão dizer, por exemplo: “ai que lindo, uma mãe guerreira, uma criança nascendo… mas que fique ali, naquele lugar, sem atrapalhar o mundo real e sério dos adultos.” E nisso eu acho que a gente dá pouco espaço à primeira infância como um momento de formação que faz parte da sociedade. E acho que essa representação infantil separada do universo adulto no audiovisual vem também de um quê de cinismo nosso, como roteiristas. Porque a gente quer ser esperto, quer ser sagaz… Mas a criança tem momentos em que ela vai ser mega esperta e sagaz, e outros em que ela vai ser uma mala. Tem momentos em que ela vai te mostrar uma coisa incrível não por ser sagaz, mas pela sua forma de olhar o mundo. Acho que o adolescente também vai por esse caminho. Acredito que discussão da representação da infância é pouco falada porque tá nesse lugar de que é menos importante. E essas questões que eu apontei estão mais nas obras adultas com personagens infantis que nas obras infantis em si. Nas adultas, as crianças costumam estar sempre em função dos personagens adultos e dessa trama “séria” deles, seja para atrapalhar ou para ajudar, mas raramente com uma profundidade maior e humana delas próprias.

Alice: Você já falou de como a sua trajetória como educadora e produtora influenciaram a sua formação de roteirista. Quais seriam outras influências na sua forma de pensar narrativa?

Ana: Eu sou muito fã da Shonda Rhimes, acho ela incrível. Por mais que sim, as séries dela tenham seus problemas… por exemplo, outro dia vi um episódio da atual temporada de Grey’s Anatomy (A Anatomia de Grey, 2005-) que é muito bom, e aborda racismo de uma forma que raramente vemos no audiovisual. Também gosto muito da Laís Bodanzky. E sei lá, eu também sempre gostei de ver coisas que eu acho ruins, entender por que eu não gosto daquilo. Tenho assistido também muitas séries “médias”, digamos, não americanas e sem muita grana de produção. Porque tá, o sonho pode ser fazer uma série com a verba da Amazon, mas a realidade muitas vezes é outra. Então é importante a gente conhecer essas possibilidades, outras resoluções possíveis, ver obras mais próximas das nossas. E às vezes nem são obras tão incríveis, mas a questão é que fazer algo ok, legal, que comunica, já é muito difícil. Uma que eu tenho assistido como referência de série adolescente é a Merlí (2015-2018, Héctor Lozano e Eduard Cortés), que dialoga mais com a realidade do adolescente brasileiro que, por exemplo, 13 Reasons Why (2017-, Brian Yorkey). E uma potência de obras adolescentes, de comédias românticas adolescentes, é que elas se comunicam e falam sobre um momento crucial na formação das relações de amor, de amizade, de sexo… Então eu acho muito interessante olhar para essas obras e pensar que imaginário elas constroem em torno disso, e como podemos alterar esse imaginário. Porque também não é simples. Existem convenções de gênero que funcionam e que são esperadas, então como encontrar essa ruptura? Como colaborar para a construção de um imaginário no qual a gente acredite?

Ana Pacheco

Nota:
1 – É chamado de mid-season o último episódio da primeira metade de uma temporada, para que a segunda metade retorne depois de um hiato.
Imagem em destaque no topo: Gaby Estrella (2013-2015, Canal Gloob).
Por Alice Name-Bomtempo