No mundo contemporâneo, não são raros os momentos em que, em meio à truculência e a turbulência dos sistemas capitalistas neoliberais vigentes, coachs sugerem diversas dicas de como nunca ter um fracasso. E o discurso que ressoa é que todas as dificuldades vividas que aparecem não devem ser consideradas como obstáculos, mas entendidas como oportunidades. E, nesse ínterim, uma das dicas propaladas recorrentes é inspirar e expirar como ferramenta para atravessar esse processo. Entretanto, a partir de Parasita (Joon-ho Bong, 2019), uma questão se levanta: qual ar é possível de ser respirado?
Em uma das cenas iniciais do longa-metragem do sul-coreano, acompanhamos a família que protagoniza o filme reunida em uma estreita cozinha na moradia precária que habitam a fim de montar, velozmente, várias caixas de pizza de papelão. A orientação para essa tarefa é feita por um vídeo que nos lembra de um tutorial, como tantos hoje encontrados na internet. Nessa dinâmica de trabalho, cada indivíduo é tencionado a ultrapassar todos os limites possíveis – é preciso ser, de si, o mais produtivo possível e otimizar, ao máximo, toda a produção feita. Nesse contexto, enquanto a família monta as embalagens, um funcionário público passa pela rua, dedetizando a calçada. E, frente a esse gesto, a família conversa e se indaga se, frente ao inseticida, deveriam manter as janelas fechadas – considerando o cheiro do químico – ou abertas – tendo em vista a oportunidade de dedetizar os insetos da própria casa. Sob a opinião do pai, Kim Ki-taek, eles decidem manter a janela aberta. Entretanto, no contato com o químico sufocante, a maior parte da família começa tossir, exceto pelo pai, que, obstinado, segue dobrando as caixas de pizza sob a nuvem do produto químico. Ele aparenta estar acostumado à toxicidade do produto e ter alguma forma de respirar que não se intoxica, tal como os insetos; não se incomoda, porém, tal como se esperar de humanos. É como se a extrema necessidade de sobreviver, de ultrapassar a dificuldade financeira, criasse um organismo outro, adaptado à insalubridade e ao inóspito. Algo semelhante ocorre quando, no momento em que há a enchente que atinge a casa deles e a irmã Ki-Jung abre uma espécie de esconderijo no teto do banheiro, retira um maço de cigarros e, sentando e fazendo pressão com o próprio corpo sobre a tampa da privada, começa a fumar, enquanto um grande volume de água de esgoto começa a ser jorrado para fora do sanitário. Na casa inundada de esgoto e no contato com ar fétido, o ar oferecido por um cigarro é o mais puro – e tranquilizante que se pode ter. É um ar que penetra um sistema respiratório de um organismo cuja marginalização social elidiu os modos comuns de se pensar o sadio e o doente.
A tolerância àquilo que se inspira e se aspira em Parasita pode ser compreendida, simbolicamente, como os modos pelos quais os mais ricos e os mais pobres se dispõem a estarem em contato no mundo neoliberalista atual. Se, no mundo contemporâneo, o chamado à necessidade da empatia e da tolerância são propalados como habilidades necessárias à vida em sociedade, o que Parasita nos coloca é o limite e a insuficiência da tolerância em uma vida verdadeiramente comum. Nesse sentido, é emblemática a fala recorrente do Sr. Park acerca do motorista Kim estar, a todo momento, na beira de cruzar ou não o limite, ao mesmo tempo em que repudia o cheiro do motorista – comparando-o ao cheiro de um rabanete podre ou em similitude com o odor daqueles que utilizam o metrô. O limite colocado por Park a Kim parece se basear no que seria uma relação profissional ou não, colocando delimitações muito específicas até onde é possível a um funcionário ter acesso – ou construir – à intimidade com o patrão, reprimindo-o em diálogos motivados por questionamentos acerca de emoções da sua vida conjugal.
Esse estabelecimento de limites pode ser entendido, também, como as fronteiras da tolerância, tendo em vista que delimita até onde há disposição para aguentar os modos de viver daquele que é diferente. Ter tolerância emerge, muitas vezes, como uma das condições necessárias à vida em sociedade atualmente; mascara, porém, as barreiras e os limites que persistem claramente no contato com a diferença e com o comportamento que são divisores do que é suportável. Essa é a limitação encontrada também em um discurso em prol da empatia cuja fundamentação social é, muitas vezes, o empenho de se colocar no lugar no outro. Entretanto, o que Parasita nos mostra é que esse esforço de se deslocar ao lugar do outro é vão se não for alicerçado pelo reconhecimento entre as diferenças irredutíveis entre nós e eles e as desigualdades sociais que contribuem para essas diferenças. Há algo desse outro que somente a ele pertence e não há possibilidade integral de comunidade se, na relação construída, não se enxergar o outro em uma complexidade única, que impede que qualquer um o seja totalmente.
Em Parasita, esse lugar da diferença é apresentado de forma inventiva. Quando o pai, a mãe, e os dois filhos da família Kim fingem ser profissionais de alta qualificação a fim de poderem conseguir trabalho na mansão da família Park, tendo em vista as dificuldades financeiras e sociais que enfrentam, há o desejo de ser um outro. Enquanto pobres, eles dificilmente poderiam ser aceitos naquela mansão; enquanto se fingem de ricos, podem participar do jogo cotidiano daquela casa. A família Kim encontra, porém, a diferença demarcada pelos donos da casa que recriminam o cheiro que eles exalam e do qual não conseguem se distanciar.
Esse estranho lugar dos pobres que podem ter acesso ao mundo dos ricos é acentuado na história de Moon-kwang, ex-governanta da casa, a qual, numa carreira marcada por servir grandes e famosos empresários, culmina escondendo e alimentando o marido em um porão secreto. Esse seu marido, para que possa viver, fabula uma morte social, a qual impede que os cobradores de dívidas o alcancem, ao mesmo tempo em que passa a venerar, de modo pouco lúcido, o dono da casa, Sr. Park, como ídolo. Na história desses personagens, evidencia-se como a erradicação da desigualdade social e da pobreza não passa, apenas, pelo convívio dos diferentes, mas da possibilidade, real e concreta, de cada indivíduo se sentir confortável no convívio com os que lhe são distintos. A partir de Parasita, percebemos que reconhecer e assumir a diferença como o maior desafio da complexidade da nossa vida em comunidade é, também, impedir que nossos conflitos sejam simplificados pelo imperativo de um respeito que não seja, de fato, genuíno.
A linguagem do outro e a dificuldade para que ela, de fato, seja apreendida e compreendida é evidenciada, também, na referência aos códigos e à conduta dos escoteiros no filme. Nesse sentido, destaca-se o uso de um jogo de lâmpadas para a expressão do código de Morse. Esse aparato doméstico seria, a princípio, automatizado; possui, porém, um mecanismo escondido no porão para o seu funcionamento, o qual depende da ação e do gesto – com as mãos ou com a cabeça – daqueles que ali habitam secretamente. Nesse caso, há um sistema que é ainda mais misterioso – senão ignorado – que o dos escoteiros: a angústia e o pedido de socorro daqueles que são oprimidos e escondidos não ganham o mundo com plena clareza, mas precisam estar subordinados à aparência de iluminar e de manter a claridade na grande mansão rica. O homem pobre e explorado, nesse caso, não está acoplado à máquina; a sua subjetividade, porém, depende e apenas encontra voz associada à grande engrenagem de iluminação. Assim, a existência e o pedido daqueles que estão em condições subumanas e clamam por ajuda só ganha o mundo no momento em que é interpretada, à primeira vista, como uma falha do moderno equipamento de luzes da grande mansão. A dor e a angústia desses que habitam o salão é, assim, apenas notada quando afeta a organização prática do que se entende como ordem e segurança do ambiente daqueles que controlam o poder.
O desafio à natureza genuína do afeto e do amor atravessa as relações interpessoais em Parasita. Nas indagações de Kim ao Sr. Park acerca do casamento dele, transparece o afinco de descobrir o amor na resolução das questões práticas entre o patrão e sua esposa. Todavia, no sexo entre Sr. Park e a sua mulher, sobressai o esvaziamento do amor justamente pelo predomínio do raciocínio prático. No momento em que ambos se deitam no sofá, transparece a necessidade de se ter a certeza e a garantia que haverá prazer no prazer, o que é expresso, por exemplo, na determinação do toque de um seio no sentido horário. Esse comportamento parece visar, por meio da tentativa de estabelecer a ordem, a certeza do alcance de um objetivo – o gozo, o afeto – sem desvios ou falhas.
Em contrapartida, as formas que o afeto se constitui na família Kim são impulsionadas pela falta e pelo imprevisto, o que modifica toda a vida deles e impacta os modos deles estarem juntos enquanto núcleo familiar. Quando o amigo de Ki-Woo, o universitário Min-hyuk, visita-o e lhe traz uma pedra solta emoldurada numa espécie de suporte de madeira, dizendo-lhe que esse será um amuleto para a melhora financeira da família, ele traz uma pedra que poderia se assemelhar a qualquer uma que fosse arrancada do chão. Nesse sentido, destaca-se a semelhança dessa pedra ganha de presente com aquelas que se soltam do chão durante a enchente que resulta no desabrigo da família Kim e dos seus vizinhos. Em determinada cena, vemos a câmera focando no chão coberto de água e esgoto e, no meio da turgidez, vermos uma pedra muito semelhante ao presente recebido. Ao final, esse pedregulho parece apontar que o sucesso financeiro da família pobre não advém senão acompanhado de dor, de sofrimento, de sangue – o que transparece, por exemplo, na cena em que Ki-Woo carrega a pedra recebida para o porão como arma para se proteger no reencontro com o ex-marido da governanta.
A tragédia como prelúdio do desenvolvimento financeiro – ou o ímpeto para buscá-lo – não se apresenta apenas na cena suparecitada, mas se anuncia na conclusão do longa-metragem. Quando Ki-woo responde à carta do pai trancado no porão dizendo que, antes de casar, de estudar, tornar-se-ia rico o suficiente para comprar a casa e permitiria que o pai ascendesse do porão, ele não estabelece, para si, um futuro distinto daqueles que o oprimiram. Feito os sintomas de alguém atingido por um vírus ou uma bactéria, o desejo do garoto é apenas poder, dessa vez, não mais pleitear um papel fabulado de alguém rico, mas sê-lo realmente. Entretanto, esse sonho não se sustenta senão se alguém permanecer, ainda que temporariamente, sofrendo e apodrecendo no porão enquanto a riqueza não é atingida. O incômodo com o cheiro do outro não é algo que se resume ao Sr. Park, mas, de algum modo, governa o desejo de não mais precisar habitar e conviver com a origem de tal odor. Ainda que, enquanto isso, aqueles que se amam sofram.