“Os Escravos de Jó”, um filme de discursos ou Carta aos patriarcas

Aqui quem escreve é um “neto”. Escrevo depois de viver uma experiência constrangedora em uma sala de cinema e de conversar com colegas de minha geração sobre o ocorrido, todos perplexos. Pergunto-me o que o senhor Antônio Pitanga, homenageado pela Mostra de Tiradentes deste ano junto com sua filha Camila, pretendia ao programar um filme como Os Escravos de Jó (Rosemberg Cariry, 2020) na abertura do evento.¹ E pergunto-me com quem o senhor Rosemberg pretendia dialogar através da realização desta obra. Escrevo depois de assistir ao debate do dia seguinte, no Centro Cultural Yves Alves, no qual o diretor literalmente se cercou de sua filha produtora, Bárbara Cariry, de um lado, e do ator Daniel Passi, do outro, contando com o generoso apoio deles para “defender” o filme das críticas – ela, das questões de gênero; ele, das questões étnicas. Todos alegaram que cada tema foi seriamente debatido durante o processo, e não duvido. Porém, o filme que chegou à tela do Cine Tenda parece muito mais o sermão de um ancião encastelado em suas crenças do que uma mesa redonda, aberta a verdadeiras fissuras e perturbações. Escrevo na esperança de que esta carta chegue até o senhor Pitanga, o senhor Rosemberg e sua equipe e, principalmente, na esperança de instigar os jovens artistas de minha geração e das posteriores a refletir sobre as possíveis formas de nos aproximarmos de nossos veteranos; sobre a responsabilidade geracional que temos, de confrontar nossos “avôs” – ainda mais nos tempos em que vivemos.

A quem não assistiu: o filme é uma adaptação contemporânea de Édipo Rei, na qual o jovem judeu Samuel (Daniel Passi) vai a Ouro Preto para fazer um documentário sobre o barroco e buscar sua ancestralidade. No caminho, se envolve com a palestina Yasmina (Daniela Jesus) e com a francesa Hélène (Romi Soares), além de cruzar com outros personagens de nacionalidades e etnias distintas, como os velhos que se tornam seus mentores: Elifas (Everaldo Pontes) e Jérèmie (Antônio Pitanga). Samuel acaba transando com Hélène e, no final, descobre que ela é sua mãe, que seu pai era um comandante nazista e ele termina o filme tendo seus olhos atingidos por rojões. 

Essa linha narrativa principal e as demais tramas paralelas são diluídas em uma sucessão de cenas em que os personagens falam e falam sobre os temas do filme. No release enviado à imprensa, o roteirista e diretor Rosemberg Cariry elabora: 

A tragédia do jovem Samuel aproxima-se da tragédia de Édipo e pode ser compreendida como uma alegoria prefigurada da sociedade contemporânea que, sem decifrar as heranças do passado, transforma a vida e o amor em atordoantes simulacros. “Os Escravos de Jó” é uma tragédia em um mundo circunstanciado por dominações econômicas e ideológicas, onde afloram os estigmas racistas e os sectarismos e, cada vez mais, os fanatismos de diversas vertentes, em construções identitárias fundamentalistas e intransigentes, onde a realização do amor e mesmo a alteridade torna-se quase impossível.

Por esse texto, pode-se notar que o projeto é ricamente embasado, que possui ampla fundamentação teórica. Mas, na prática, o que ficou no filme foi apenas um desfile de referências; o encadeamento de imagens não dá conta de tamanha pretensão conceitual. Tudo parece estar posto em cena para reforçar e amparar uma ideia que é anterior ao filme: basta colocar os personagens para falar, filmá-los com a decupagem mais esquemática possível e a tese será comunicada, pronto. Sem crises, sem dúvidas. Se há um enorme risco de arrogância na juventude, há também na velhice: de achar que o jogo já está ganho, de ter certeza de que se tem razão mesmo quando se está equivocado. Pergunto-me até que ponto a equipe realmente teve espaço para criar em conjunto ou se simplesmente confiaram no roteiro do patriarca, na expectativa de que as coisas fizessem sentido na montagem. 

Pensemos sobre a ideia de qualidade. Uma discussão infinita e das mais antigas questões a tirar o sono dos cineastas e críticos brasileiros. Não seria justo comparar um filme de baixo orçamento com grandes produções estrangeiras, na expectativa de equiparar obras feitas em contextos tão distintos. Mas trago a ideia de qualidade porque Os Escravos de Jó contou com profissionais de grande reconhecimento em sua realização, entre atores e técnicos, e o resultado alcançado em termos de imagem/som é bastante aceitável. Há planos fotograficamente bem compostos, iluminados com esmero, movimentos elegantes de travellings, som captado com alguns poucos problemas e dublado de maneira eficiente, belas locações históricas… Não estou falando disso. O que proponho pensarmos sobre qualidade está na encenação realista. 

Ao discutir realismo e representação na literatura, Peter Brooks faz uma analogia entre a brincadeira de uma criança com uma casa de bonecas e a criação de uma obra ficcional. Nesse tipo de brincadeira, há uma forma de repetição do mundo, com a diferença de que o mundo se torna maleável. “Nós estamos sob controle das criaturas e coisas.” (Brooks, 2005, p. 2) Mas a criação ficcional demanda uma maestria que uma criança, em geral, não tem. Maestria para enganar, para mentir no intuito de dizer a verdade: “[as ficções] precisam encurtar, sumarizar, perspectivizar, dar uma ilusão de completude através de fragmentos (…) É como você finge que conta.” (ibidem, p. 6) Não estou insinuando sua falta de maestria, caro patriarca. Respeito sua trajetória e experiência de vida, anteriores ao meu nascimento. O que me surpreende, enquanto espectador do século XXI é o total desleixo do roteiro e encenação ao brincar de realismo. Não dá pra começar o filme e, na primeira aparição de uma personagem, colocá-la para caminhar na rua e falar com sua amiga um diálogo como aquele: através de perguntas e respostas simples do tipo “há quanto tempo você tá aqui?”, ela se apresenta, fala de sua história pregressa, de seu trabalho, seu irmão, sua amiga comenta que possui interesse amoroso nele… Que apresentação de personagens mais preguiçosa! Não haveria outra forma – mais realista mesmo – de iniciar sua história? Aponto esse exemplo porque é justamente a primeira cena do filme, mas esse tipo de procedimento narrativo simplório acontece em praticamente todas as cenas. São diálogos diretos e sem vida. Você realmente queria que o público embarcasse em sua brincadeira?

Não há artesania, maquinação. Levanto uma questão sem resposta possível, para refletirmos: será que esse roteiro passaria em laboratórios ou editais se não tivesse o selo Rosemberg? Há cenas inteiras simplesmente para dar informações verbais; a instância narrativa parece partir do princípio de que o espectador tem uma inteligência limitada, ou a atenção dispersa. Entendo esse tipo de recurso nas telenovelas, com sua tradição calcada na oralidade e com uma característica fundamental do suporte televisivo, mais frio, que precisa convocar a atenção do espectador no ambiente doméstico. Ainda assim, tenho acompanhado telenovelas recentes (principalmente da Rede Globo) e percebo algum cuidado na maneira de distribuir informações, na forma de condensar cenas e aterrá-las a uma mínima ideia de realidade, coisa que não acontece em Os Escravos de Jó. O longa se leva a sério demais para que o espectador veja qualquer possibilidade de distanciamento na inverossimilhança, no artifício, nos diálogos absurdos. As situações ocorrem simplesmente porque é conveniente para o desenrolar da história e do discurso do filme, seja nas coincidências dos encontros – sempre na hora certa e no lugar certo – ou nos longos diálogos em que os personagens verbalizam os pensamentos do realizador através de discursos.

E esses discursos são rasos. Fico pensando se haveria outra palavra mais justa – gosto das superfícies – mas, por ora, fiquemos com essa ideia. São rasos, pois não se desdobram, não se questionam, não cavam ou buscam camadas. No debate, o senhor Rosemberg justificou que “o filme não comporta uma tese acadêmica mais aprofundada” e, em seguida, citou uma série de teorias e autores, dando-nos uma pequena e interessante palestra sobre o transbarroco. Contudo, isso não está no filme. Em vez disso, os personagens ficam na tela explanando preceitos básicos de geografia e história, enumerando referências de pensadores e artistas, sem qualquer complexificação, exaltando e literalmente brindando aos mestres. Até que um personagem pergunta: quem são os escravos de Jó dos dias de hoje? E a outra ainda se dá o trabalho de responder, é claro, verbalizando pela milésima vez o discurso do filme de forma direta: são os povos do oriente médio, as vítimas de genocídios, etc. Retorno, então, a uma de minhas perguntas iniciais: com quem o senhor Rosemberg pretendia dialogar através da realização desta obra? Com os mais jovens? Por acaso o senhor já viu as provas que precisamos fazer pro vestibular?

Os Escravos de Jó é uma espécie de visita guiada a Ouro Preto, alternando tais discursos sobre a temática dos genocídios e opressões com esquetes melodramáticas ilustrativas. No entanto, na tessitura fílmica, não há qualquer tensão entre essas camadas, nem quando surgem falas paradoxais e sintomáticas de uma certa visão de esquerda. Para que colocar na boca de um personagem negro a afirmação de que o extermínio de afrodescendentes no Brasil piorou depois do golpe? Por que não temos um outro personagem na cena para enriquecer o debate e questioná-lo sobre os extermínios e autoritarismo que aconteceram durante os governos do PT? Alguém para desconfiar da narrativa do golpe, a pensar um pouco além dos discursos prontos de palanques. Se a ficção realista pode moldar a realidade, qualquer coisa, em tese, pode acontecer dentro de uma cena. E que conveniente é o universo diegético deste filme, em que quase todos os personagens coadunam com o discurso do diretor-roteirista, e os que discordam são desqualificados pelos demais. O contrato realista entre obra-espectador se quebra quando eu percebo a fragilidade dos pilares erguidos.

Analisando a dimensão política do longa, o crítico convidado ao debate, Reinaldo Cardenuto, identificou uma simpatia do filme aos personagens que se alinham a um determinado discurso, e atentou à imagem recorrente da personagem Yasmina restaurando esculturas de santos. Reinaldo questionou: “afinal, que crença é essa que o filme está tentando restaurar e que está ali alegoricamente trabalhada?” E propôs uma leitura possível: “talvez o filme tente resgatar uma ideia ‘romântica’, de esquerda, universal, de que é possível que as diferenças se unam em torno de um projeto político romântico, revolucionário (…). Um projeto que moveria o mundo adiante. A rigor, talvez o filme esteja tentando restaurar uma ideia de frentismo político.” Mais adiante, provocou: “Será que a gente pensa na frente de uma maneira equivocada? Será que a frente é uma pluralidade que se junta num coletivo ou é uma pluralidade que aceita a diversidade concreta? Como que a gente cria uma frente? Às vezes, o filme me parece aderir a uma noção de frente que não deu certo no Brasil.” 

Essa visão de uma esquerda romântica e, acrescento, masculina-patriarcal paira sobre todo o filme que, entre suas frases de efeito, nos diz que a poesia talvez possa salvar a humanidade. Não. Não é colocando uma moça palestina apaixonada por um rapaz judeu para soprar uma flor de dente-de-leão e depois filmá-los deitados sobre a relva em um plano zenital que se salvará a humanidade. Muito menos se esse rapaz tiver uma parede em sua casa repleta de imagens do holocausto e, na mesma parede, logo ao lado, colar fotos de fragmentos do corpo nu dessa moça, sem qualquer consequência narrativa para essa colagem mórbida.

E, afinal, depois de tudo o que já foi pensado a respeito da obscenidade, da imoralidade e do irrepresentável nos registros do holocausto – e que, no debate, o senhor Rosemberg afirmou ter estudado profundamente – por que incorporá-las ao tecido fílmico sem tensionar essa escolha dentro da própria obra? A quem não assistiu, refiro-me a uma longa cena em que o velho sionista Elifas projeta aquelas famosas imagens em movimento dos judeus raquíticos recém-saídos de campos de concentração, dos cadáveres daqueles que não sobreviveram, de escavadeiras empilhando os restos mortais. Tais registros são incorporadas ao filme em altíssima resolução (um licenciamento que, imagino, tenha custado boa parte do orçamento do longa), ocupando toda a tela.

Ao investigar as polêmicas e os problemas em torno das representações do Holocausto (Shoah), Ilana Feldman reflete:

Por isso, em um momento histórico em que as distâncias foram abolidas e em que tudo parece ter se tornado visível e mostrável, quando morre-se ao vivo e repetidamente, dos programas de televisão vespertinos às imagens divulgadas pelo terrorismo internacional, a polêmica em torno da representação da Shoah continua sendo paradigmática para refletirmos sobre a “Era das catástrofes” em que ainda vivemos. Mais do que nunca, é preciso pensar de que modo a crítica da cultura em geral e das artes e do cinema em particular podem se posicionar diante de imagens traumáticas, de eventos extremos, inimagináveis e talvez irrepresentáveis – ou representáveis, apesar de tudo. Se algo aparece como impossível, é aí que deve resistir o pensamento. (Feldman, 2016)

Ou seja, há discussões possíveis a partir dessas imagens. Não me coloco aqui ao lado de um dogmatismo acadêmico que, de antemão, as repudiaria. Mas se tanta coisa é (supostamente) discutida em Os Escravos de Jó, por que não discutir a imagem, o próprio cinema? Se o filme vai jogar em nossas retinas imagens abjetas como as do holocausto, que ao menos ele se problematize de alguma forma – não necessariamente através de diálogos, há outros recursos possíveis!

Talvez, enfim, esse seja o maior problema do filme: não se colocar em xeque enquanto cinema. Um projeto com tamanha ambição precisaria de uma forma fílmica à altura, que nos permitisse acessar seu modo de pensar através da estética; uma forma de inventar e costurar imagens, atenta ao pensamento contemporâneo. Isso seria, no mínimo, o esperado de um cineasta experiente, como é o caso do patriarca Rosemberg Cariry. Porém, não é o que acontece. O filme derrama sobre a tela uma série de discursos blindados, esperando que o público apenas concorde e os aceite. E é a esse tipo de arrogante irresponsabilidade que me refiro.

Por Vitor Medeiros

Nota:
1 – A curadoria da Mostra Homenagem é feita pelo homenageado em conjunto com a produção do evento.
Referências:
BROOKS, Peter. Realist vision. Londres: Yale University Press, 2005.
FELDMAN, Ilana. Imagens apesar de tudo: problemas e polêmicas em torno da representação, de Shoah a O filho de Saul. ARS (São Paulo),  São Paulo , v. 14, n. 28, p. 134-153,  Dez 2016.