O cotidiano abduzido de “Ontem havia coisas estranhas no céu”

Há algo de profundamente ridículo e patético em uma filmagem de cinema.
(Pedro Costa)¹

Um plano que condensa grande parte das tensões de Ontem havia coisas estranhas no céu (Bruno Risas, 2020) aparece no final do segundo terço do filme. Durante a gravação de uma cena em que Viviane Machado, mãe de Bruno, precisava ficar séria olhando para um ponto fixo, ela se desconcentra e tem uma crise de riso. Seu filho, por trás da câmera, dá um chilique. Ela reage: “Cê quer que eu faça o quê, cara? Eu tô tentando! (…) Não sou atriz, Bruno. Tô fazendo de tudo.” E, depois de um longo bate-boca em que Viviane alega estar cansada, Bruno a provoca: “Transfere de volta o dinheiro que te mandei ontem. (…) Não consegue entender que o negócio é o trabalho.” A mãe diz estar envergonhada do comportamento do filho “na frente dos outros” e segura as lágrimas, sentindo-se desrespeitada. Nesse plano, identifico três elementos que se entrecruzam ao longo de todo o filme, e que pretendo abordar neste texto. São eles: a ideia de trabalho enquanto temática central e propulsora de conflitos; uma investigação acerca da presença dos corpos ao redor da câmera; e a fricção das fronteiras entre vida e cinema. 

Na programação da Mostra de Tiradentes, consta que se trata de um longa do gênero “ficção” e, na sinopse em primeira pessoa, Bruno narra: “Meu pai ficou desempregado e a família toda precisou voltar para a antiga casa no bairro da Bresser. Minha mãe procura saídas, mas não sabe o que fazer. Enquanto isso, eu os filmo. Um dia, ela é abduzida por um estranho objeto no céu. Nossa vida continua como se nada tivesse acontecido.” Se pensarmos na sinopse como um paratexto da obra, ela estaria convidando o espectador a uma espécie de ficção científica, especificamente àquelas em que um personagem registra os acontecimentos em tom documental com uma câmera assumida dentro da diegese. Penso em longas como A Bruxa de Blair (Eduardo Sánchez, Daniel Myrick, 1999), [REC] (Jaume Balagueró, Paco Plaza, 2007) e Cloverfield (Matt Reeves, 2008). Numa lógica de cinema clássico, um evento fantástico como essa abdução funcionaria como um disparador, o incidente incitante, algo que movimentaria a história, de preferência, ainda no primeiro ato. 

Todavia, trata-se de uma pegadinha: a abdução só acontece nos minutos finais do filme, no que seria o final de um terceiro ato. O que vemos nos primeiros 90 minutos é o cotidiano de uma família (principalmente) dentro de uma casa, executando tarefas domésticas, vivendo pequenos dramas triviais, atritos de convivência e lidando com a onipresente câmera do filme. Ainda assim, a possibilidade de uma abdução alienígena fica pairando sobre toda a obra, mais como uma iminência, algo que pode acontecer a qualquer momento. Enquanto, tecnicamente, as imagens permanecem (até os últimos instantes) calcadas na concretude daquilo que o real pode oferecer ao aparato do cinematógrafo, o som se apresenta como o recurso audiovisual mais propício para evocar o fantástico. Desde o tom sério da narração em voz over de Bruno até os efeitos sonoros esquisitos que remetem aos filmes de horror e sci-fi, nossa apreensão daquelas imagens banais é afetada, somos induzidos a um estranhamento. 

Junto com o som, o fora de campo também é constantemente ativado e a câmera opera como uma catalisadora de situações extra cotidianas. Como no plano em que ela (a câmera) faz uma panorâmica acompanhando Julius Marcondes (o pai) pela sala, revelando Viviane sentada em seu quarto, e em seguida ocultando-a no fora de campo. Ficamos um tempo com Julius olhando pela janela e ouvimos um som crescente de drone ou sintetizador – será que ele está vendo as tais coisas estranhas no céu? Em seguida, Julius olha na direção do quarto de Viviane. A câmera volta, em panorâmica, e agora Viviane está na sala, em primeiro plano, olhando para cima. Não ouvimos os passos dela caminhando até ali, parece que ela se teletransportou; o efeito sonoro alienígena aumenta drasticamente. O que aquilo quer dizer? Em outra cena, Bruno dirige seus pais gritando por detrás da câmera, e eles perguntam se a voz do filho estará na montagem final; ele não responde. Mais adiante, o extracampo se materializa quase fantasmagoricamente, numa sequência composta por um compilado de planos em que a diretora de fotografia Flora Dias faz testes de stand-in em quadros que já vimos ao longo do filme, só que preenchidos por Viviane ou Julius. Flora parece passear pela casa como uma extensão simbiótica da câmera invasora que tomou conta daquele espaço, e é como se aquelas imagens nos lembrassem de que esse trabalho de Flora sempre esteve ali, tão presente quanto os outros trabalhos, só que invisível porque ocorrera em tempos anteriores aos que vimos na montagem até então. Em momentos assim, mais do que o som e o fora de campo, o filme se permite uma liberdade de linguagem que desliza por regimes imagéticos instáveis, difíceis de apreender, potencializando a sensação de fantasia, de flutuação e de desconfiança das imagens. Ontem havia coisas estranhas no céu me faz refletir que nenhuma nave espacial pode ser mais estranha do que fazer cinema. 

Devido a essa variedade de regimes, assistir o filme é uma experiência desafiadora, como assistir uma partida de um esporte com regras desconhecidas. Como terão sido feitas aquelas imagens? Retomo a cena descrita no início do texto, a briga entre mãe e filho. Aquilo é muito “real”, Viviane não parece estar “atuando”, pelo contrário, o conflito se dá por sua incapacidade de atuar. Porém, a consequência disso é uma reação extremamente dramática, habilmente captada pela câmera. Será que aquilo foi previamente combinado como um gatilho? Será que Bruno está provocando a mãe no âmbito pessoal sem que a mãe saiba, com a consciência de que aquilo pode render uma “boa cena”? Ou será que ele também se descontrolou naquele momento e a ardilosa câmera-Flora-fantasma-E.T. aproveitou para continuar fortuitamente gravando o caos, com o consentimento de mãe e filho? A cada cena, o espectador se depara com novos mistérios desse jogo que se dá ao redor da câmera: qual a dinâmica ali; o que foi combinado entre as partes; o que cada um está buscando; o quanto do que estou vendo está previsto nas regras e o quanto é resultado da quebra dessas regras pelos jogadores? Nesse sentido, destaco a avó, Geny, como uma das principais forças disruptivas, quase sempre testando os limites do dispositivo.

Para ajudar-nos nessas reflexões, trago a análise feita por Pedro Drumond do longa Era o Hotel Cambridge (2016), dirigido por Eliane Caffé e fotografado por Bruno Risas. Dadas as inúmeras diferenças entre os projetos, percebo uma ligação importante para o raciocínio que venho traçando, que é a ideia de uma contrapartida enquanto horizonte ético de ambos os projetos, uma “forma de lidar com as tensões que emergem entre a captura e a devolução da riqueza sensível de um mundo no qual o cinema se intromete. Não ceder, apenas, um espaço dentro da imagem, mas dividir o gesto próprio da criação do que virá a ser uma imagem de cinema” (Drumond, 2017). No caso do longa de Caffé, a contrapartida se deu através de uma parceria com um núcleo de estudantes de arquitetura da Escola da Cidade para reformar o prédio filmado, melhorando a vida dos moradores da ocupação. Os alunos assinam a direção de arte junto com Carla Caffé, porém, esse processo não foi incorporado ao filme enquanto cena, como foi feito no caso do filme de Bruno. Não vemos Carla e os estudantes trabalhando na ocupação como vemos Julius e Viviane, pai e mãe de Bruno, que assinam a direção de arte de Ontem havia coisas estranhas no céu. Se é preciso reformar uma parede ou lavar um banheiro, que se faça diante da câmera, garantindo o plano e a tarefa doméstica ao mesmo tempo. Desse modo, é efetuado um amalgamento dos trabalhos doméstico e cinematográfico, do espaço do cinema com o espaço da vida. O trabalho com o cinema surge como uma fonte de renda extra, um paliativo ao desemprego – é “para todos nós”, como diz Viviane na cena de briga analisada acima. 

Julius Marcondes em “Ontem havia coisas estranhas no céu” (2020)

A princípio, fazer um filme parece ser uma boa ideia para os moradores daquela casa. Porém, conforme o tempo vai passando, o cinema vai se apresentando como elemento perturbador, catalisador de angústias. O quanto aquelas vidas serão transformadas com a presença da câmera alienígena? A montagem de João Marcos de Almeida salienta duas dimensões: trabalho e desconforto. Praticamente, todos os planos do filme propõem que percebamos o trabalho em suas diferentes aparições: no fazer fílmico; nas cenas em que personagens efetivamente executam tarefas; ou nas paisagens urbanas da Bresser, um bairro operário com compridas chaminés industriais, superfícies de concreto a perder de vista (outrora erguidas por mãos também operárias), e moradias em eternos processos de reforma. O tema do trabalho é ainda verbalizado pelos personagens em diálogos corriqueiros e, em situações que se assemelham a entrevistas mais tradicionais, o diretor questiona a mãe sobre qual trabalho ela teria mais boas lembranças. Pois o filme parece intuir que talvez Viviane não esteja feliz em seu cotidiano, com seu trabalho atual, com as escolhas que fez em sua vida. Ela diz que é desconfortável falar.

Mas Viviane e Julius assinam o roteiro, junto com Bruno e Maria Clara Escobar. Com isso, pai e mãe se colocam como co-criadores de suas próprias representações, junto com o filho documentarista que lhes aponta a câmera. Não são meros personagens, mas atores e realizadores dessa obra. Isso confere uma camada de complexidade a cenas como quando Viviane fala um texto decorado que não sabemos por quem foi escrito, mas que diz: “E, nesse instante, ela pensa em como seus esforços e sonhos se confundem todos num mesmo fracasso.” Vemos uma mulher partilhando sua intimidade e tomando consciência de seus pequenos dramas enquanto dramas. Como diz Denilson Lopes, “O comum bem pode ser mais difícil de viver do que o demasiado, o extremo, o excessivo.” (Lopes, 2017, p. 54) Seria o cinema um presente ou uma maldição para esta família – em especial, para esta mulher? Tornar-se atriz por necessidade, executando mais um trabalho dentre tantas tarefas domésticas, um trabalho que surge como oportunidade, e não como um sonho. Realizar ações simples, como olhar para um ponto fixo, e tomar consciência de seu próprio rosto como objeto de interesse cinematográfico, de sua casa como um cenário. Parar e olhar para o trabalho doméstico como um campo estético.

Viviane Machado e Geny Rodrigues em “Ontem havia coisas estranhas no céu” (2020)

O filme parece nos instigar (espectadores e realizadores) a nos espantarmos com alguma beleza a ser redescoberta no cotidiano. A atentarmos àqueles detalhes posicionados num cômodo para enfeitá-lo e que, com o tempo, foram invisibilizados pela repetição da vida e por tudo aquilo que parece mais importante e urgente. Nesse sentido, a diluição narrativa, a iminência de abdução alienígena e o tensionamento provocado pelo jogo ao redor da câmera contribuem para catalisar o surgimento de momentos de intensidade dentro do banal. Não há um encadeamento de acontecimentos com forte carga dramática e estrutura de causa-efeito para conduzir nossa experiência; estamos pairando pelos cômodos daquela casa, pelos arredores do bairro. Quanto tempo se passou entre um plano e outro? Quantos dias, meses, anos, estivemos ali? Nesse estranho regime de imagens, precisamos nos perguntar a cada imagem: o que será que “aconteceu” ali – ainda que esse acontecimento seja mínimo – para que esse fragmento específico de cotidiano tenha sido pinçado pela montagem e exibido para nossa fruição? 

Bruno nos convoca a um tipo de atenção sutil e delicada, alinhando-se a uma tradição cinematográfica da encenação afetos (Lopes, idem, p. 37) que entende, por exemplo, que “A carne é somente o revelador que desaparece no que revela: o composto de sensações” (Deleuze & Guattari, apud Lopes, idem, p. 70). Devemos observar os micromovimentos musculares da bochecha de Viviane, do seu lábio, as alterações no ritmo de sua respiração. Diferente da expectativa do cinema clássico de que os rostos, as palavras e os gestos desenrolem uma trama, há aqui uma busca por algo que está no presente, que emerge dos corpos e se faz evidente na superfície. Os corpos filmados (e o próprio corpo da câmera) parecem vivos e pensantes, permitindo-nos pensar junto deles sobre a materialidade de suas ações, abertos à atribuição de sentidos. Como Bruno comenta em voz over, citando sua mãe: “Tudo é igual mas nada é igual. Um gesto que muda. Um jeito de olhar.” 

Comentando esse cinema brasileiro contemporâneo interessado no mínimo e no comum, Denilson reflete: “Que filme pode haver quando o conflito é pequeno? A quem pode interessar? Será que a ausência de dramas é uma simples afirmação de um aqui e agora sem grandes utopias, feito dia a dia? (…) Não mera sobrevivência, mas uma vida modesta, vivida sem grandes alardes, sem temer as precariedades de se estar em cena ou na vida.” (Lopes, idem, p. 41) Contudo, mesmo essa vida modesta, circular e repetitiva de classe média parece estar ameaçada pelo desemprego. De dentro de casa, não há paisagem possível no horizonte; até para enxergar o céu com coisas estranhas, é preciso subir ao telhado ou fazer uma curva com o olhar pela janela. 

Nesse contexto, é bonito o interesse do filme pelos ensinamentos de Viviane, apontando-nos caminhos possíveis – não para escapar da rotina, mas para lidar com ela com algum encanto. Até porque Viviane é abduzida, passa alguns minutos fora e, logo em seguida, retorna. Nada de muito importante parece ter mudado, nem ela percebe diferenças significativas entre seu mundo e o dos E.T.s: “Lá e aqui é tudo igual”, diz ela. Por isso, se estamos fadados a viver aqui por tempo indeterminado, de que adianta apenas lamentar e reclamar? Viviane não menospreza a necessidade da filha em lutar por seus direitos trabalhistas, mas é preciso também “dar risada”, de vez em quando, como ela demanda do pai. É preciso cozinhar um almoço gostoso e, no caso de Bruno, voltar a experimentar um prato que desgostava na infância para se surpreender com o sabor. Ainda que seja necessário colocar óculos de grau para reparar no detalhe da sobrancelha da avó, a mãe faz questão de depilar. Toques de vaidade para um bem-estar no aqui e agora. Por que não se arrumar para estar linda no cotidiano doméstico? Quiçá menos para os outros e mais para si, para que faça sentido levantar da cama e encarar um novo dia de trabalho. 

Por Vitor Medeiros

Nota:
1 – Entrevista presente no catálogo da mostra O cinema de Pedro Costa (Centro Cultural Banco do Brasil, 2010, p. 25).
Referências:
DRUMOND, Pedro. Os interstícios do Cambridge. Revista Moventes, 2017.
LOPES, Denilson. Afetos, Relações e Encontros com Filmes Brasileiros Contemporâneos. São Paulo: Hucitec, 2017.