No dia 29 de janeiro, após o debate no contexto da 23ª Mostra de Tiradentes, acompanhamos a equipe do longa Ontem havia coisas estranhas no céu pelas ruas molhadas da cidade histórica, em busca de algum restaurante que servisse nhoque para fazer “ritual da fortuna” da tradição italiana. Não encontramos, e nos rendemos à comida mineira. Sentamos à mesa, reproduzindo as recorrentes cenas de refeição do filme, e falamos sobre dinheiro, trabalho, feminismo, Rio Tamanduateí, comida e, é claro, sobre cinema. Em determinado momento, ligamos o gravador do celular e começamos a registrar a conversa com Bruno Risas (diretor, roteirista, figurinista, ator), Flora Dias (diretora assistente, diretora de fotografia, figurinista, atriz), Viviane Machado (roteirista, diretora de arte, atriz e mãe de Bruno) e Julia Alves (produtora). A entrevista foi conduzida por Vitor Medeiros (editor da Moventes) e Diego Franco (colaborador convidado). Esta transcrição, portanto, já começa in media res, quando Diego comenta da presente ausência de Mari, irmã de Bruno, cujo falecimento é apresentado na sequência inicial através da voz over do diretor.
Diego: É muito expressivo que, apesar da morte da Mari não ser discutida durante o filme, logo no prólogo ela surge junto às coisas que estabelecem o panorama de situações e relações que definem o estado de coisas da sua família e sustenta a história de Ontem havia. Como foi pensada essa ausência na estrutura narrativa?
Bruno: A narração do início é um pouco sobre um panorama do que eu conseguia elencar em uma lista objetiva de acontecimentos que me interessavam para começar o filme. É muito pessoal nesse sentido. Não é sobre a família. Vou fazer a minha lista de dados que fundamentam esse filme, e são aqueles acontecimentos. Talvez a minha mãe faça outra lista, sabe? Acho que o filme todo se dá um pouco acerca do questionamento sobre quem é a minha mãe para além da figura materna, sabe? Quem é a Viviane? Quem é o Julius? É um pouco sobre o entendimento das pessoas para além daquele espaço formal dos papéis que exercem institucionalmente enquanto família. A morte da irmã entra um pouco nisso. Eu sei como bateu em mim, mas como bateu a fundo em você? [aponta para Viviane] Sei como foi a dedicação de vida da minha mãe à vida da minha irmã. O que significa agora não ter mais a irmã para ser a justificativa de permanência ali, de estar perto? Assim como quando a minha vó morreu. O que agora faz com que você não se mova?
Flora – Entendo como um dado fundante do filme a ausência da Mari, a morte dela, mas fiquei pensando exatamente em outro dado importante que está naquela lista, o nascimento do Leão [filho de Bruno]. Da existência de uma criança que também não está no filme, ele não aparece.
Diego – São as duas ausências do filme, da morte e da vida.
Flora – Exatamente.
Diego: Ao pensar os filmes dos irmãos Lumiére, especialmente O almoço do bebê [1895], no qual, ao fundo, se vê mexer as folhas de uma árvore, o pensador francês André Bazin argumentou ser a especificidade do cinema a possibilidade de ver o tempo.¹ Você conseguiria, a partir de então, ver Deus. No filme de vocês, percebemos o tempo passando, observamos o envelhecimento dos corpos ao longo dos anos. Ao mesmo tempo, o crescimento da atuação dos personagens, que no primeiro plano é ainda muito “dura”, e ao longo do filme se transforma de maneira muito potente.
Vitor: Viviane, desde o início do projeto até agora, o que mudou na sua relação com o filme? O que o filme mudou ou está mudando em você?
Viviane: No começo, enquanto era uma filmagem deles, do Bruno e da Flora, eu achava normal estarmos sendo filmados em casa. Tanto que lembro da cena na qual a gente brinca, no dia das mães, e estamos ouvindo música junto com Isabela [irmã mais nova de Bruno]. Aquilo era aquilo mesmo. Depois, quando virou um processo de ter outras pessoas, de ter mais gente, desenvolvi algumas inseguranças. Quando começou a “virar um filme”, quando o projeto recebeu um aporte financeiro, eu ficava super envergonhada. Será que eu estava correspondendo àquilo que esperavam de mim? Eu não sou atriz, será que estava agindo meio estranho? Mas fui me acostumando, aos poucos. Acordava de pijamas e fazia o café pra eles. Para mim foi uma experiência tão doida, tão boa, de preenchimento de um espaço que estava tão triste… Conhecer todas essas pessoas e trocar, e ver que, cara, é isso, sabe? Olha quanta gente, quanta história, quanta vida. Eu estava em uma zona de conforto porque era dentro da minha casa e não tinha que pegar um calhamaço e ficar decorando nada. A única vez que tive que decorar dei aquela errada básica, segurei todo mundo em um sábado à noite, todo mundo querendo sair e eu não conseguindo falar.
Vitor: Qual era a cena?
Bruno: No começo, quando ela fala “minha personagem está sentada no sofá…”.
Viviane: Ele escreveu o texto naquele dia mesmo, duas horas antes, e perguntou se eu conseguia decorar. Disse que ia tentar, sempre achei que fosse ótima em decorar. Também tem isso, você se desconstrói em um monte de coisas. Para mim foi tão incrível! Não consigo me distanciar, porque a partir dali, eu como pessoa, por dentro, mudei horrores em relação a conceitos que vinha carregando.
Vitor: Você acha que o filme teve um papel importante nisso?
Viviane: Acho que sim. Eu e Julius César sempre vivemos aquela construção: o marido trabalha, a mulher fica em casa. Nesse processo, fui desconstruindo isso e entendendo que não precisava ser inimiga dele ou odiá-lo – e às vezes eu o odeio muito – por conta de não concordar mais com isso ou aquilo. Não concordar não significa ter perdido a admiração por ele. Em algum momento, comecei a me questionar sobre certas coisas. Essa experiência e vivência com o cinema, conhecer essas pessoas… eles são libertos e maravilhosos, não estão nem aí.
Vitor: No filme, quando Bruno pergunta como foi a experiência que você mais gostou de trabalhar, você responde com outra pergunta: “o trabalho ou o ambiente de trabalho?” As transformações que você viveu foram muito através das pessoas que você conheceu ao longo das filmagens?
Viviane: Acho que teve muito a ver com isso. Só veio gente massa demais. Não tinha um lugar de criação impositivo, era uma relação de negociação constante. Não era porque alguém estava lá para acender a lâmpada que eu não falava com ele. Isso me fez reaprender uma série de coisas nas quais cresci acreditando, sobretudo a respeito das hierarquias. Ali eu vi que não, que não precisa de nada disso. O filme me deu a chance de perceber que era preciso mexer em algumas coisas, e observar quanta vida, quanta experiência, quanta coisa bacana estava ali. Eu não precisava ficar presa aos conceitos com os quais cresci. Alguns amigos e familiares me disseram “você está mudada”, “você está feminista”. Eu falava que não era feminista, mas também não era mais a mesma pessoa. Teve amigo com quem briguei e não falo mais. Ele dizia que eu não tinha que falar mais com sua esposa e era alguém que passei anos visitando, um amigo de infância do meu marido. Eu já estava com o pé atrás e, quando ele disse isso, morreu pra mim. Acabou o respeito total. E eu acho que sim, o filme foi responsável por isso.
Vitor: Tem uma cena na qual isso me parece muito presente. Você e Flora estão conversando, aparentemente sozinhas, sobre o trabalho e as negociações que são necessárias, a intimidade. Tudo que você falou me parece ter a ver com isso. Flora, você gostaria de complementar a fala de Viviane? Como é para você ouvi-la falando sobre essas coisas?
Flora: Tem um contexto histórico também. Como a Julia estava falando mais cedo, o filme acompanhou a ascensão e o declínio do cinema. Acho que nossas vidas e o filme também acompanharam a transformação epistemológica da sociedade; eu e Viviane vivemos a primavera feminista juntas. Ouço ela falar isso sobre o Julius e me emociono, porque logo que cheguei naquela casa, eu e Julius tivemos uma briga e ficamos alguns meses sem conversarmos.
Vitor: Durante o processo de trabalho do filme?
Flora: Não, na vida. Fazer o filme fez parte dessa cura da convivência, da sociabilidade. A gente precisa passar por isso, e o filme acompanhou essas transformações que a sociedade sofreu por conta das transformações que aconteceram nas intimidades. Essas transformações aconteceram nas relações mais íntimas das pessoas. A gente teve muitos rachas nas famílias, as relações afetivas que se transformaram. Acho que essa cumplicidade que eu e Viviane temos foi construída porque um filme movimenta muita coisa. Quando a gente faz um filme que dura dois meses, às vezes a gente vive três anos em dois meses, em termos da quantidade de embate que a gente tem, da inflamação emocional que a gente vive dentro do processo do filme, das contradições que a gente tem que enfrentar porque o tempo às vezes coloca as pessoas umas contra as outras. Um filme é sempre corrido, e a nossa maior complicação é não ceder a essa complicação do tempo, que o tempo não nos torne inimigos.
Bruno: Inclusive que seja o contrário, fazer com que o tempo faça parte de um processo não de apaziguamento, porque não tem apaziguamento, mas de ressignificação constante. Porque a gente pode brigar agora, e tudo bem. Isso não significa que tem alguma coisa estanque. É movimento. Passar a respeitar o tempo nesse lugar tem a ver com isso, não é apenas aceitar que ele imponha essa violência contra a gente, mas também que a gente reencontre o tempo no lugar onde ele devia estar, que é o do fluxo. Agora a gente se fala, agora a gente não se fala. Agora a gente se ama, agora não se ama mais. Não é à toa que o filme começa com o rio.
Flora: Um filme que dura 10 anos das nossa vidas é uma corrente. Ele não é um evento, enfim, as transformações que esse filme detonam não se encerram. Elas perduram, elas seguem. Fizeram uma pergunta no debate sobre como a gente tinha visto a abdução ontem. A gente não respondeu essa pergunta.
Bruno: Eu nunca respondo essa pergunta, fizeram na Itália também.
Flora: Foi muito incrível, na verdade, porque fiquei pensando até no que a gente entende como alienígena em uma paisagem tão perturbada como a que a gente vive. A presença do rio no início e final do filme, durante a abdução, o coloca como uma pista para uma leitura do que essa abdução talvez signifique no filme, que é uma outra realidade possível. Tenho uma relação com a natureza dentro da cidade de São Paulo, de espaços de força, de espaços sagrados, ainda que pressionados pela recente ação humana. Fiquei pensando no rio, achei ele tão lindo ontem porque assistir o filme na presença do público faz com que coisas saltem. Fiquei tentando enxergar com todos aqueles olhos que estavam enxergando e fiquei apaixonada pelo rio. E, quando ele volta no final, aqueles mesmos brilhos surgindo, fiquei pensando que o rio nos conduz, que ele, por si só, é um alienígena na cidade. Que ele se mantém com suas propriedades sagradas, ainda que.
Julia: A cidade é sempre relembrada que o rio existe. Tampa, constrói em cima, mas chove e vai encher o túnel. Vai chover e alagar, arrastar carro. Ele continua lá.
Bruno: Aquela região da Bresser é uma grande várzea. No primeiro hipódromo que teve, ali era o lugar onde os cavalos bebiam água porque era terra mole. É muito doido. Até hoje as casas alagam. Então tem uma coisa bonita na presença do rio que não é a negação da cidade em volta dele, porque isso é história, é matéria, está ali. A gente não odeia aquela cidade, a gente está ali, somos frutos dela. É uma relação de assimetria e complexidade que a gente tem que enfrentar o tempo todo.
Minha mãe fala sobre o que o filme fez com a vida dela, mas o filme não vai mudar a vida dela. E talvez crie um problema por causa disso, então, a partir disso, pessoalmente… eu quero que se foda porque vai dar tudo errado mesmo. Geral tá tentando fazer dar certo e vai dar errado. Então, uma vez que você se predispõe a esse fracasso latente, pode começar a ressignificar as coisas. Não é um discurso otimista, não tenho otimismo nenhum em relação à vida, acho que vai ser uma grande merda. Acho que a gente vai morrer triste. Mas, ao mesmo tempo, tem alguma fé em alguma coisa e, como minha mãe, sou pisciano. O tempo todo estou contando com a sorte. Quando era da idade do meu filho Leão, o túnel do Anhangabaú encheu. É uma imagem que nunca esqueci. Um túnel encher é uma resposta à tentativa de dominação que não vai se concretizar. Não porque é a natureza contra o homem mas porque estamos em um mesmo lugar.
Flora: Talvez o alienígena no filme só venha nos lembrar que não existe onipotência, que não estamos sozinhos. Está todo mundo tentando em várias dimensões.
Diego: Como o filme acompanha um arco temporal que dá conta do up and down do cinema nacional, em relação a formas de patrocínios e de distribuição, o dispositivo que vocês criaram acaba evidenciando uma forte potência do cinema, que é de transformar vidas, em um lugar muito sutil. Viviane comentou sobre isso ao dizer que estava vivendo um momento muito ruim e, quando vocês chegaram com o filme, com o cinema, algo mudou. A partir disso, como você pensa a relação que o cinema estabelece com os processo de vida e de trabalho?
Julia: Ontem havia acompanha a ascensão e queda de um tipo de cinema nacional e a pira é: desde a primeira imagem do filme, em 2010, depois a ideia, em 2011, esse filme sem os apoios e fundos que acessou nunca teria existido. Hoje, em 2020, seria impossível realizá-lo do jeito que ele foi feito porque, inicialmente, o filme ganhou o primeiro edital de desenvolvimento da prefeitura, em 2013, que por acaso tinha uma linha para roteirista iniciantes. Isso possibilitou o desenvolvimento do filme, que envolveu escrever o roteiro tendo Viviane e Julius já envolvidos; registrar mais imagens na casa; fazer uma imersão na casa, com Bruno indo todos os dias para filmar. Então temos o roteiro. Em 2015, a SPCINE foi criada e, por acaso, dois filmes apoiados seriam de baixo orçamento e seriam os primeiros filmes [dos realizadores contemplados]. Nos inscrevemos e fomos apoiados. Nesse momento, o fundo setorial tinha arranjos regionais e complementava o patrocínio da SPCINE. Foi o primeiro ano ou o segundo, se não me engano, que as distribuidoras começaram a receber uma grana para poder apoiar produções, então entrou a Vitrine Filmes com um apoio. Em 2018 a gente conseguiu acessar o fluxo contínuo, a famosa corrida maluca, que era quem chegava primeiro conseguia. O nosso foi, historicamente, o filme que ganhou o menor aporte, 99 mil reais, e é muito bom ver a lista dos contemplados porque tem nosso filme, depois tem Marighella [2019, Wagner Moura], com 3 milhões de reais.
Claramente esse sistema não era feito para a gente, e esse é o ponto. Foi muito louco ver como isso tudo foi se construindo, e no fazer do filme tudo isso se dissolveu, porque essa pretensa indústria não é para nós, sacou? Não é para esses filmes. As políticas públicas não estavam sendo construídas para incluir nossa forma de cinema. A gente é especialista em brecha. Criamos uma ficção e uma narrativa para conseguir colocar esse filme dentro de institucionalidades nas quais ele não cabe. Como explicar para a ANCINE um filme de ficção com uma equipe de quatro pessoas que é filmado durante três anos? É impossível. A ANCINE não entende esse jeito de se fazer cinema, a SPCINE também não. Não entendem que um longa de ficção pode ser filmado em mais de quatro semanas. Baixo orçamento para a ANCINE é dois milhões, não quinhentos mil como foi nosso filme. Então como explicar isso, sabe? Era um esforço e um exercício para entender como a gente compreende essas possibilidades e as entorta, subverte… o fluxo contínuo que deu 3 milhões para o Marighela não era para o nosso tipo de filme, mas abriram uma chamada e pensamos: por que não? Dedos rápidos e pronto, conseguimos.
Flora: Acho importante dizer que quando a gente fala para a SPCINE que vamos fazer um filme com quatro pessoas e ele vai durar três anos, não significa que será em regime de dedicação exclusiva. Esse filme foi feito em 10 anos e não tem como ser dedicação exclusiva de ninguém. O tempo todo estávamos trabalhando em outros filmes, inclusive a gente estava, em termos de pesquisa e metodologia, paralelamente experimentando em outros filmes o que experimentávamos nesse. Essas coisas não se encerram em um exercício de autor, sabe? O exercício que a gente fez se deu nas brechas do nosso tempo, nas brechas que a gente conseguia construir para fazer essa pesquisa, entremeados pela pulverização dessas ideias para tudo que a gente estava fazendo, para todos os outros filmes e em todos os postos possíveis.
Vitor: Pensando a partir do filme de vocês, eu gostaria de falar um pouco mais sobre o trabalho no cinema. Estar no festival de Tiradentes e ver filmes com maneiras de produção semelhantes, que dialogam com Ontem Havia, faz a gente pensar sobre o agora. Muitas pessoas dizem que estamos vivendo o apocalipse, mas sempre foi assim, não? Particularmente, sempre achei um absurdo as nossas condições de trabalho. Sempre trabalhamos de maneiras predatórias bizarras, sem direito trabalhista nenhum. Agora piorou, mas não acho que tenha mudado grandes coisas. Tem esse fim de uma ideia de que algo poderia melhorar lá na frente, mas creio que já estava fadado a esse fracasso.
Bruno: Mas essas são as assimetrias do que a gente pode falar. Eu até brinco, disse outro dia que na minha vida estou igual ao capítulo do Tristes Trópicos no qual Levis Strauss fala que São Paulo foi da selvageria à decadência sem conhecer a civilização. É um pouco sobre a nossa geração, entende? A gente não foi um momento, a gente já era decadente, de repente. No sentido de que estávamos batalhando para trabalhar e também para fazer nossos filmes, em paralelo. Porque trampar e fazer nossos filmes não era a mesma coisa. De repente era, e a gente estava no topo sem ter experimentado o topo. A gente tem que ficar muito atento à forma das coisas porque lidamos com imagem, com estética, com a aparência das coisas. Acho que a gente que tá fazendo cinema há muitos anos tem o privilégio de trabalhar com uma coisa que não pode ser só sobre execução e resultado, e as políticas públicas foram incríveis. Nossa geração se forjou nessas políticas públicas. No entanto, elas foram sobre o resultado, é para maluco dizer “tem vinte filmes não sei aonde”, “tem trinta filmes não sei aonde”. Isso é importante enquanto contranarrativa oficial agora, mas não é sobre isso.
Julia: “Vamos bater meta!” Ano passado tivemos 10 filmes em Berlim, esse ano vamos ter quantos?
Bruno: “Meu filme custou 2 milhões porque eu empreguei 60 pessoas.” Vá se fuder. Você empregou em quais condições? Com quais garantias? Cosplay de indústria é isso. Mas o que está em jogo? Trabalhar como um condenado e não ter nenhuma possibilidade de ideia de continuidade?
Flora: O que mais pega com essa coisa de continuidade é pensar também que nos últimos anos, para além da produção, a gente tem trabalhado com formação, com pulverização de conhecimento. Faço parte de um coletivo de diretoras de fotografia que nos últimos dois anos o que mais tem feito é atividade de formação. É tentar colocar mais mulheres para trampar com direção de fotografia. De alguma forma, quando a gente estava ali há um ano e meio atrás e formou vinte mulheres em uma imersão no SESC, tinha uma necessidade que vinha delas de que fossem “absorvidas” – e eu falo isso com muitas aspas – pelo mercado. Entrei no cinema antes dessa ascensão, por isso, nunca tive a ilusão de que o mercado pudesse ser nosso aliado, mas essa galera teve e a gente estava ali batalhando…
Julia: E acreditaram nisso, e acreditamos.
Flora: Acreditamos. E eu, enquanto educadora, fiz parte dessa ilusão. Era importante que cinco minas daquelas vinte conseguissem trampar com assistência de câmera ou com direção de fotografia nos próximos dois anos. Eu vivi dez anos e tá bom demais, agora não sei o que vou fazer, mas foi massa. Não tem continuidade, a gente sempre soube, mas acho que algumas pessoas estão caindo de um degrau um pouco mais alto.
Bruno: É triste que não tenha política pública para construção cultural, a gente sabe que é um ataque sistemático. Mas a gente também não pode ser idiota de rebater isso com aquela propaganda do Bacurau [2019, Juliano Dornelles e Kleber Mendonça Filho] sobre a cultura ser uma indústria. Sai fora! 8 milhões custou a produção daquele filme ruim, horroroso! No coração do mundo [2019, Gabriel Martins e Maurílio Martins], que é um filme análogo em termos de linguagem, do tipo de cinema a que faz referência, custou 700 mil. Acho muito significativo que a gente pense sobre isso. O cineasta não pode achar que não está lidando com isso. Empregou muita gente, e daí? E agora que acabou a produção, o que você faz? E o motorista, o que vai fazer agora que não pode mais empregá-lo?
Julia: Ouvindo o áudio da mesa Viver de cinema: da macro à micropolítica, alguém da plateia discute se, ao longo dos últimos anos, construímos a indústria que queremos. “Ela tem a representatividade que queremos?” “Quem está nessa indústria?” A minha primeira reação foi que essa frase não faz sentido. A indústria é de quem detém os meios de produção. Não existe uma indústria inclusiva, uma indústria da diversidade, esse é justamente o ponto. Se estamos fazendo cinema como indústria, falamos sobre quem tem acesso aos meios de produção. É uma questão básica do Manifesto Comunista. A gente ainda fala da indústria como a indústria que queremos? Não existe a indústria que queremos. Ela tem que ser destruída, esse é justamente o ponto. Quem tem isso nas mãos? Quando falamos do cinema como indústria, sobre como não deu certo, sobre o cinema como cosplay da indústria, a gente tem que pensar sobre o movimento do PIB, sobre quantos empregos foram gerados. Se a gente está falando sobre indústria, vamos falar sobre quem detém os meios de produção, quem são os donos, quem são os industriais? Se o paralelo é esse, então vamos discutir nesse lugar.