O inferno são os outros

A premissa é a seguinte: uma protagonista mulher ou LGBTQIAPN+ habita um universo opressor e patriarcal. Apesar de sua inocência, essa mocinha sem defeitos precisa enfrentar vilões cruéis e acaba descobrindo que só conseguirá sobreviver com o mínimo de dignidade unindo-se a outras vítimas dessas violências sistêmicas ou fugindo do lugar onde se encontra. Bebendo na fonte do melodrama, são histórias que retratam de diferentes maneiras a luta do bem contra as forças do mal, na maioria das vezes corporificadas em antagonistas caricatos e inescrupulosos, mas eventualmente aparecendo também em personagens tidos como aliados – supostamente tão oprimidos quanto a protagonista.

Pela safra de filmes ficcionais exibidos no 56º Festival de Brasília, essa parece ser uma tendência do cinema brasileiro recente. Proponho neste ensaio que nos atentemos a alguns curtas e longas que formam um mosaico representativo de um conjunto de obras que denunciam problemas sociais por meio de uma lógica narrativa que representa mundos divididos entre vítimas e algozes. 

* Atenção: contém muitos spoilers!

Via crúcis no holocausto brasileiro

A primeira história que trago aqui se passa em 1971, em Barbacena, Minas Gerais. “A jovem Elisa engravida do namorado e é internada à força pelo pai no Hospital Psiquiátrico Colônia. Após passar por muitos abusos, Elisa, junto com outros colegas injustiçados, lutará para encontrar uma maneira de fugir dessa sucursal do inferno.” Eis a sinopse oficial de Ninguém Sai Vivo Daqui (direção: André Ristum, 2023, exibido na abertura do festival), uma adaptação do livro-reportagem Holocausto Brasileiro (de Daniela Arbex, 2013), que denuncia os maus-tratos ocorridos no maior hospício do Brasil.

Com uma virtuosa fotografia em preto e branco que flerta com uma tradição do cinema de terror e com o expressionismo alemão, o longa se passa quase inteiramente dentro dessa sucursal do inferno, conforme apresentado pela sinopse. A pobrezinha da protagonista não tem um minuto de paz, sendo constantemente agredida pelos funcionários (inclusive por mulheres) e por uma das internas. A trilha musical acentua os momentos de tensão e emoção com instrumentos de corda, tudo bem perturbador e melodramático.

Ninguém Sai Vivo Daqui

A salvação possível encontrada por essa estranha no ninho é se aliar a outras pessoas internadas no manicômio, como Vanda, que se torna sua mentora. Porém, a rede de amizade de Elisa vai aos poucos morrendo ou saindo de lá, deixando-a cada vez mais solitária e doente, condição agravada pelos remédios que é forçada a tomar, assim como as torturas e castigos. Até mesmo sua mãe, que Elisa acreditava poder ajudá-la, se revela conivente com a injustiça da internação forçada da filha. 

A única personagem com um arco de transformação moral dentro da narrativa é Laura, uma enfermeira negra que se sensibiliza com a situação de Elisa. Ela representa um arquétipo importante nessa linhagem de histórias: o da pessoa (geralmente racializada) que faz a ponte entre os dois mundos; neste caso, começando a história pertencendo ao lado mau e depois se convertendo, tornando-se secretamente uma aliada subversiva da mocinha. Outro personagem que vive um processo semelhante é Antônio, um funcionário negro que, no clímax, passa mal, vomita, e desiste de colaborar com o esquema bizarro de venda de corpos – sem, no entanto, ativamente ajudar nossa heroína.

Ninguém Sai Vivo Daqui. Foto: Marina de Almeida Prado

De resto, são todos personagens bem planos nesse mundo dicotômico, justificado pelos símbolos religiosos que povoam o calvário de Elisa. Destaque para as sequências em que ela chega a gritar “va de retro” para o funcionário Juraci, o satanás perverso vivido por Augusto Madeira, ator que curiosamente também compõe o elenco de Nise – O Coração da Loucura (direção: Roberto Berliner, 2015); e para o confronto final em que Elisa mata Juraci enfiando um crucifixo no seu pescoço. Nessa altura do filme, ela está vestida de noiva após uma grotesca quadrilha de festa junina, toda de branco, já adquiriu dons sobrenaturais como o de se comunicar com os mortos e até consegue reviver Raimundo, um outro interno que ela salva do hospital, trazendo-o para fugir junto dela.

Ninguém Sai Vivo Daqui é uma produção impecável tecnicamente, com grandes atuações, exemplo de um cinema “de qualidade” e portanto compreensível seu lugar na abertura hors-concours do festival. Todavia, é também o exemplo mais evidente dessa lógica narrativa maniqueísta que se repetiu em outros filmes selecionados pela curadoria do evento. Vejamos o próximo.

A arte de sorrir cada vez que o mundo diz não

Percorrendo uma linha cronológica, o segundo filme se passa nos anos 1980. Trata-se de Nós Somos o Amanhã (direção: Lufe Steffen, 2023, exibido na Competitiva Nacional) um longa que em muitos aspectos é quase o oposto do que comentamos acima: colorido, divertido, nostálgico, tecnicamente precário… Um deleite camp, corajoso em sua radicalidade estética com referências não apenas à cultura de massas oitentistas mas também a clássicos do cinema queer. A encenação teatral remete a Wittgenstein (direção: Derek Jarman, 1993) e alguns números musicais parecem saídos de The Rocky Horror Picture Show (direção: Jim Sharman, 1975), com direito à citação de “Don’t dream it, be it”. Temos um elenco de adultos interpretando crianças e todes parecem estar se divertindo bastante. O próprio Lufe, diretor, faz o protagonista Rodriguinho, contracenando com as estrelas queer contemporâneas Silvero Pereira e Rico Dalasam e o ícone dos anos 80/90, Claudia Ohana. 

No entanto, seu roteiro segue uma lógica bem semelhante ao terror dirigido por Ristum, e no lugar do manicômio, temos aqui uma escola particular paulistana. A sinopse oficial também é bastante significativa para nossa análise: 

Separados por suas diferenças, tentam sobreviver ao bullying, perseguidos por questões raciais, de gênero, sexualidade, forma física, comportamento. Até que um dia, a futurista professora musical Clara Celeste aterrissa para mostrar que tudo pode ser diferente. Ao experimentar o empoderamento, tais personagens se unem e finalmente conseguem viver suas identidades com liberdade. Mas a escola, a normatividade e o monstro do conservadorismo estão de olho. Conseguirão nossos heróis vencerem a batalha contra a intolerância?

Tal qual o caso analisado acima, este também retrata violências de maneira brutal. Xingamentos desumanizadores como “bicha”, “macaca”, “viado” e “baleia” são recorrentes, e Alice, a menina trans, sofre transfobias constantes. Isso tudo embalado de uma maneira estranhíssima por regravações originais (interpretadas pelo elenco do filme) de canções da Xuxa, Balão Mágico, Trem da Alegria, entre outros clássicos da época retratada. Dessa forma, Nós Somos o Amanhã é disruptivo ao se apresentar como um musical infantil, com um tom geral bem leve, mas não hesita em romper com o espaço cômico característico desse tipo de história, que costuma ter um universo benevolente e seguro para que a protagonista possa viver sua jornada de transformação interior. A crueldade do bullying é encenada sem dó nem piedade.

Não surpreende o fato de ter provocado tanto desgosto no público do festival, que saiu em debandadas ao longo da projeção. Nos dias consecutivos, tive até dificuldade de debater o filme pois a maioria das pessoas que conversei não conseguiu assistir até o final ou simplesmente detestou a experiência. Além do desconforto com a violência, escutei comentários reclamando de um certo mau-gosto pela tosqueira estética, e uma indisposição diante da linguagem musical – mesmo com o aviso prévio do diretor na apresentação da sessão, afirmando se tratar de um musical, e de todas as advertências textuais bem auto-conscientes ao longo do filme relembrando estarmos diante de uma narrativa deste gênero. Nesse sentido, fica a reflexão se não seria uma estratégia válida adicionar mais uma cartela: um “alerta de gatilho” no início do filme, para pelo menos preparar espectadores mais sensíveis para as atrocidades traumáticas que são faladas e postas em cena (que muito me incomodaram mas entendo sua importância dentro da proposta), dando-lhes a possibilidade de não viver essa experiência.

Apesar das passagens mais espinhosas, a conclusão traz uma visão esperançosa para o futuro. Rodriguinho, a protagonista vítima e solitária vai angariando alianças significativas entre as colegas que também são oprimidas. A primeira conversão é a de Maribel, uma menina negra que, tal como a enfermeira Laura, começa a história ao lado das populares metidas e coniventes com o bullying, e em dado momento se transforma. A segunda grande conversão é a de Ricardinho: paixão platônica do protagonista, inicialmente aliado dos vilões, que chega a agredir nosso herói, mas termina o filme como seu par romântico. Rodriguinho é um personagem típico do arquétipo da virgem que inspira o reino em que vive, sendo ajudada pelo arquétipo da mãe-deusa representada pela professora Clara Celeste, uma espécie de Robin Williams de Sociedade dos Poetas Mortos (direção: Peter Weir, 1990). É ela quem explica ao protagonista que Reginaldo, um dos colegas malvados, é apenas um “fruto desse mundo absurdo em que a gente vive”. E Reginaldo termina a história amargurado, enquanto outros membros de sua gangue são transformados pela maravilhosa magia do amor.

Nós Somos o Amanhã

Meu coração é amor, desejo e paixão

Avançando um pouco mais no tempo, chegamos ao verão de 1996, litoral de Alagoas. Com uma estética que dialoga com o cinema de Lucrecia Martel, Sem Coração (direção: Nara Normande e Tião, 2023, exibido na mostra Coproduções) é um desdobramento do curta homônimo de 2014, inspirado em memórias da diretora, que cresceu na região onde a história se passa. O longa teve seu lançamento no Festival de Cinema de Veneza e já chega em Brasília aclamado pela crítica, tendo vencido o Prêmio Felix (destinado a filmes com temática LGBQTIA+) e o Prêmio de Melhor Fotografia no Festival do Rio 2023, além do prêmio da ABRACCINE na Mostra de São Paulo. Uma trajetória à altura do seu também alto valor de produção, com imagens estonteantes e um enfoque no despertar da sexualidade da protagonista e seus colegas, que formam um bando de jovens.

Contudo, embora pareça habitar um paraíso idílico, a protagonista se depara com o preconceito e a violência naquela vila pesqueira. Em uma festa, ela precisa intervir em uma briga para defender Kayque, seu amigo negro e gay, pulando no pescoço do homem que o agredia com motivações homofóbicas. Após a confusão, em uma cena emocionante, o bando de crianças e adolescentes dá um abraço coletivo no menino agredido, encorajando-o a não viver com medo. Mas nem sempre Tamara consegue protegê-lo. Mais adiante, o mesmo amigo é sequestrado e espancado. 

Sem Coração

Outra vítima é Galego, um menino pobre, recém-liberto da FEBEM que trabalha como jardineiro na casa dos pais de Tamara. Nossa mocinha consegue acolhê-lo após uma surra dada pelo pai, que renega o filho por considerá-lo um bandido, mas no final o encontra assassinado na estrada. O principal suspeito é um dos vilões, Seu Geraldo, vizinho de Tamara que carrega uma arma na cintura e acusa injustamente Galego pelo furto de um relógio – que sabemos ter sido furtado e revendido pelo irmão de Tamara, Vitor. Este representa um contraponto para nossa mocinha, tendo sido criado pelos mesmos pais fofos e maconheiros, mas assumindo atitudes moralmente questionáveis e egoístas.

Tamara, por sua vez, é amada por todo mundo, uma replicadora do afeto que recebe em casa (principalmente de sua mãe, Fátima) e que escuta diversas vezes dos amigos que fará falta quando se mudar para Brasília, deixando-os carentes de afeto e proteção. Ela se orgulha desse apreço, mas decide partir assim mesmo, aproveitando do privilégio que é a possibilidade de sair daquela comunidade opressora para ser quem realmente é, desejo expresso por Kayque, que não tem a mesma oportunidade. Muito menos Duda, a “Sem Coração” que dá título ao filme: uma moça negra misteriosa, representada como uma espécie de Moana que se comunica magicamente com arraias e tainhas, tem o dom de prever a chuva, vive da pesca e trabalha ajudando o pai vendendo bebida na mesma festa frequentada por Tamara. É com ela que a mocinha vive sua jornada de descobrimento sexual, mas Duda termina o filme na boleia de um caminhão, enquanto Tamara passa por ela em um ônibus de viagem. Elas não se veem. 

Tamara consegue escapar, porém as demais personagens seguem presas naquela terra perigosa, povoada por “esses bosta do caralho”, os vilões segundo Kayque. “Se prender eles, vai aparecer mais.”

Levanta mina, olha pra cima 

O presságio de Kayque se confirma. Os vilões preconceituosos seguem se multiplicando e assombrando jovens em todo o país, até os tempos atuais. E Sofia, mocinha protagonista de Levante (direção: Lillah Halla, 2023, exibido na mostra Coproduções) descobre isso da pior maneira possível. A sinopse oficial dá o tom da abordagem narrativa:

Às vésperas do campeonato de vôlei decisivo para seu futuro como atleta, Sofia descobre uma gravidez indesejada. Na tentativa de interrompê-la clandestinamente, ela vira alvo de um grupo fundamentalista decidido a detê-la a qualquer preço. Mas nem Sofía, nem aqueles que a amam estão dispostos a se render ante o fervor cego da manada.

Essa premissa se aproxima bastante do filme de Ristum, inclusive pelo viés religioso. Contudo, o horror da narrativa não se reflete em uma visualidade monocromática e sombria. Pelo contrário, o longa é pop, sensual e alegre, e teve uma carreira análoga ao filme dirigido por Nara e Tião. Teve uma estreia internacional na Semana da Crítica no Festival de Cannes deste ano, onde foi premiado com o Prêmio FIPRESCI, e logo se tornou um queridinho da crítica, angariando prêmios em festivais nacionais como o Mix Brasil, Festival do Rio e também nos Festivais de Biarritz e Havana.

Tamanha repercussão provavelmente graças à belíssima representação de corpas dissidentes na intimidade do vestiário e nas festinhas embaladas por uma trilha sonora com hits de Linn da Quebrada, Bivolt, Mc Carol, entre outras. Sofia e amigues do Bonde C.Leste (o time de vôlei) são alegres, curtem a vida intensamente e com liberdade, tal qual o bando de jovens de Sem Coração. Aqui, elus furtam uma farmácia, fazem xixi nos carros que passam abaixo de uma passarela (gritando “golden shower”, entre gargalhadas) e, o grande conflito da história: apoiam a protagonista na tentativa de abortar. Todas essas atitudes poderiam ser moralmente questionáveis, mas são apresentadas como comportamentos justificáveis dentro da moral da história.

Tudo se complica quando a mocinha vai para uma consulta na ALIADAS, uma falsa clínica de aborto que se revela uma emboscada. Ali, ela conhece Gloria, a grande vilã. Uma mulher cis branca evangélica, dissimulada e perigosa, liderança do movimento que articula a rede de cristãs vizinhas a Sofia em uma campanha difamatória que inferniza sua vida. As ameaças incluem citações bíblicas, como a pixação no muro: “O Salário do pecado é a morte.” Ou seja, apesar de pregarem defender a vida de um possível feto, essas personagens ameaçam a vida da nossa protagonista.

Esse pesadelo acaba afetando João. Pai solo de Sofia, viúvo, um homem amoroso, cuja primeira reação à notícia da gravidez é agressiva, chamando-a de irresponsável, “jogou a porra do seu futuro no lixo”. Mas ele rapidamente muda, e segundos depois volta atrás, pede desculpas e passa a ajudar a filha na tentativa de realizar o aborto. Outra figura afetada é Sol, a treinadora do time de vôlei. Arquétipo da figura racializada que consegue transitar entre os dois mundos (do bem e do mal), inicialmente posicionando-se contra a protagonista e depois tornando-se uma forte aliada. Tanto o pai quanto a treinadora se tornam alvo dos fundamentalistas religiosos, junto com Sofia e o Bonde C.Leste.

O pesadelo vai muito fundo. Depois de sofrer diversos ataques, Sofia se torna uma mártir, culminando em um caótico linchamento numa quadra de vôlei, invadida por uma multidão desembestada e furiosa, que resulta em um aborto involuntário. Apesar da tragédia, durante toda a jornada, us fiéis escudeires de Sofia sustentam o apoio incondicional à nossa mocinha protagonista, arriscando suas carreiras e segurança pessoal para ajudá-la em sua missão. Os cristãos malvados seguem sendo violentos, e se comportam, na verdade, como os fariseus que atacam nossa Jesus no templo esportivo. Mas ela, no final, ressuscita e termina o filme celebrando a vida de cabeça erguida com sus discipules. Como elus dizem no grito de guerra: “Ainda assim eu me levanto. Se eu cair, eu me levanto.”

Levante. Foto: Wilssa Esser

Nós é o corre

No interior de São Paulo, Preto é um motoboy gay que vive no corre. Circulando por ruas e avenidas, guiado pelos chamados de aplicativo, ele representa a parte mais precarizada de uma rede virtual que conecta clientes e fornecedores. O curta Cidade by Motoboy (direção: Mariana Vita, 2023, exibido na Mostra Competitiva Nacional) acompanha uma noite na vida desse trabalhador, com suas deambulações, comunicações por celular e encontros, detendo-se especialmente na cena em que Preto é humilhado por um morador de condomínio rico que reclama passivo-agressivamente do atraso na entrega de uma pizza e se recusa a recebê-la. 

O curta, assim, se insere nesse panorama de obras ficcionais com vítimas do sistema. Vemos o mundo pela subjetividade de Preto. Seu cotidiano duro é apresentado com crueza e algumas fissuras poéticas, como no momento em que uma luz vermelha piscante (que poderia vir da diegese, mas que é esgarçada expressivamente) traduz a sua angústia depois da humilhação que sofreu do cliente cretino, somada a um tratamento hiperrealista do som de sua respiração ofegante, e uma trilha tensa. No final, ele é consolado por seu companheiro negro em uma dimensão realista e por um grupo de motoboys que performam ao redor do casal em uma outra dimensão, mais lúdica.

Cidade by Motoboy

Pelo retrato do filme, não parece haver uma saída possível dessa condição, diferente de outras protagonistas brancas mencionadas acima (como Elisa e Tamara). Preto não tem a chance de fugir daquela realidade, nem qualquer perspectiva de transformar radicalmente sua vida, e se vingar tampouco parece ser uma solução. Conforme atesta também a sinopse oficial: “os muros dividem muito mais do que terrenos, e só um amor transgressivo aliviará o peso desse cansaço.” O dia seguinte virá, os desafios serão os mesmos e ele só poderá contar com sua rede de afetos para se manter de pé.

Com a força das transcestrais

A protagonista de Erguida (direção: Jhonnã Bao, 2023, exibida na Competitiva Nacional) tem uma trajetória estruturalmente parecida. Ela é uma travesti preta moradora da periferia de São Paulo, que começa o seu dia alegre e otimista, mas se depara com pequenas violências e acaba tendo uma forte crise nervosa, terminando o curta sendo acolhida, tal qual o protagonista de Cidade by Motoboy. Só que nesta obra há algumas diferenças importantes, que tensionam e reconfiguram a linhagem de histórias de vítimas x algozes vistas até aqui. 

Erguida

A primeira diferença é que uma das violências transfóbicas vem das funcionárias de uma loja de roupas da qual a protagonista – performada pela própria roteirista e diretora – tenta ser cliente. Outra situação que abala a mocinha dessa história se dá quando um homem negro e cis com o qual ela se relaciona afetiva-sexualmente se recusa a ir até sua casa em um evento familiar, alegando preferir ficar com ela somente na privacidade, sem conseguir assumi-la publicamente nem querer estabelecer vínculos com sua rede de amizades.

O curta, portanto, mostra que as opressões podem vir, sim, de figuras aparentemente aliadas, que se apresentam como lobos em pele de cordeiro. Ainda assim, a dicotomia permanece, e a protagonista é retratada como uma heroína sem defeitos para além de sua ingenuidade. No final, após o acolhimento ela se fortalece e decide erguer a própria voz, declamando um discurso poético e político, ocupando pela primeira vez um espaço que antes parecia não lhe pertencer. Através da arte, Jhonnã convoca sua transcestralidade preta e consegue sensibilizar o público majoritariamente cis de um slam, afrontando inclusive o bofe que machucou seu coração. Um final positivo e edificante.

Por um cinema de contradições

Neste ensaio, analisamos obras lançadas em 2023, mas que foram idealizadas e produzidas durante os governos de Temer e Bolsonaro. Um período devastador, no qual nos deparamos com a necessidade de lutar por direitos básicos adquiridos e de gritar por aquilo que parecia óbvio. Olhamos em volta e nos percebemos cercades de pessoas que apoiam ideias fascistas e replicam discursos genocidas. Nesse cenário, é compreensível que artistas brasileires sintam a necessidade política de trazer essas inquietações para suas produções, utilizando seu ofício para tentar conscientizar o máximo possível de pessoas das mazelas que sofremos – um gesto comum na produção de muitos artistas de esquerda durante a ditadura civil-militar, por exemplo. 

Talvez as obras acima apresentadas ajudem a fortalecer a auto-estima de pessoas que se vejam espelhadas na tela, criando vínculos e suscitando debates relevantes – e isso não é pouco. E talvez a aposta em estruturar histórias seguindo a velha dicotomia do bem contra o mal seja uma estratégia válida para se comunicar com um público tão habituado às telenovelas e à lógica cristã, utilizando as mesmas armas que nos atacam para contra-atacar.

Ninguém Sai Vivo Daqui

Afinal, diante do mal-estar vivido num mundo sombrio, é reconfortante assistir a filmes que nos coloquem como mocinhas iluminadas. Mas não estaríamos sendo demasiadamente condescendentes com nós mesmas? Especificamente nos festivais de cinema e no circuito independente no qual essas obras estão circulando, fica a sensação de estarmos falando para convertidos. Chama atenção também a literalidade das sinopses lidas acima, paratextos importantes na divulgação desses filmes, que já estabelecem de cara esse tipo de premissa. A quem eles estão destinados? 

Ainda que todas as produções deste conjunto sejam eficientes em denunciar violências presentes no território brasileiro desde, pelo menos, a colonização portuguesa, fica uma sensação de esgotamento desse formato narrativo. Filmes feitos para comprovar discursos e visões de mundo, bastante seguros de si e de suas ideias. Será essa a melhor maneira de criar pontes e provocar empatia naqueles que entendemos como Outro, ou será que estamos reforçando uma cisão entre nós (oprimidos) e eles (opressores)? 

Seguindo a pedagogia desses filmes, lembro do ditado que diz que quando apontamos o dedo pra alguém, outros três apontam para nós mesmas. Entendo que esses filmes são frutos de um contexto histórico, que são valiosos e potentes, mas fica o questionamento pro futuro: até quando seguiremos responsabilizando o outro? Desconfio que já tenha passado da hora de trabalharmos nossas complexidades e contradições, investindo em representações de personagens um pouquinho mais contraditórias – e, por isso mesmo, mais humanas.

por Vitã