“No céu da pátria nesse instante” – entrevista com Sandra Kogut e Henrique Landulfo

Durante o ano de 2022 e início de 2023, a cineasta Sandra Kogut e sua equipe acompanharam dezenas de brasileires com variadas orientações políticas e de diferentes regiões do país para produzir um documentário sobre as eleições. Nesse período, foram feitas videochamadas periódicas via Zoom, cada pessoa gravou um pouco de seu cotidiano usando câmeras de celulares e também foram articuladas equipes profissionais para filmá-las em esquema de cinema direto, resultando em um filme que mistura um pouco de cada um desses registros. No céu da pátria nesse instante estreou no Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, em uma sessão cheia e calorosa, com direito a manifestações inflamadas do público, que gritou, aplaudiu, vaiou, discutiu, gargalhou e comemorou, como se revivesse coletivamente aquele processo eleitoral.¹ 

Após o debate realizado na última segunda-feira (11/12/23), sentei-me com Sandra e Henrique Landulfo (diretor assistente e produtor) para discutir o processo criativo desde a concepção do projeto até a finalização da obra.

Vitã: Um ponto que me interessa muito no trabalho de vocês é essa dimensão da tecnologia e de como isso afeta a linguagem do filme. Na apresentação da sessão, a Sandra disse que ao longo do processo vocês foram reinventando o jeito de fazer esse filme. E lembrei do filme Voluntário ****1864 – Quem são os anônimos da vacina? (2021), que foi a última parceria de vocês dois, e tem um dispositivo parecido, eu percebo a continuidade de uma pesquisa. Tem alguma reverberação que vocês trouxeram de lá para esse novo projeto? Quais foram as reinvenções?

Sandra: Quando acabou o Voluntário, eu imediatamente pensei assim: pô, vamos pegar esse dispositivo que foi tão interessante, vamos falar das eleições desse ano que vem pela frente, que vai ser tão decisivo e tal. Quando a gente começou, ainda estava na pandemia e aquela ideia dos diários do jeito que tinha sido, dos Zooms, aquilo fazia um sentido. A gente estava meio preso naquele eterno presente, parecia uma maldição. As coisas eram tão extremas e se sucediam numa velocidade tão vertiginosa que você ia esquecendo, era muito difícil você fazer um fio do que estava acontecendo. E daí a gente também não conseguia ver o que vinha pela frente. Então, a ideia do diário conversava com isso. Só que eu comecei a ficar saturada do excesso de comentários, de fala, com que a gente era bombardeado o tempo todo. Foi ficando evidente que aquilo que tinha servido ao Voluntário e que era conceitualmente importante, porque estava todo mundo preso dentro de casa, não ia funcionar nesse novo tempo. E comecei a levantar [a ideia] de fazer uma coisa mais auto-explicativa e isso já não conversava com esse diário. Só que tudo isso era ficar trocando o pneu do carro com o carro andando, né? Então a gente foi reinventando.

Henrique: E tinha uma coisa que era o momento, né? A gente não podia deixar passar o 7 de setembro. Tinha um calendário e a gente tinha que estar funcionando todo dia para que esses momentos-chave estivessem no filme, os marcos temporais. Então isso é o grande motor do filme também: o calendário estava correndo e a gente tinha que correr atrás dele, porque sabia que não ia voltar um outro 7 de Setembro. Será que vai ter segundo turno? Ninguém sabia. Eram momentos decisivos da história do Brasil e daqueles personagens. Então, isso também é uma coisa um pouco diferente [do filme] da vacina, que tinha várias doses, mas eram coisas que a gente podia contornar. 

S: O grande desafio sempre, nos filmes, é você entender as ferramentas que existem e como elas se tornam realmente necessárias. De um jeito orgânico, que aquilo possa ser linguagem e conceito daquele filme ao mesmo tempo, uma coisa só. Então durante a pandemia, o Zoom era um pouco a estética daquele momento. Aqui é outra coisa completamente diferente, tanto que [o Zoom] quase não aparece. Mas ele está assim, por baixo, escondido, para criar uma intimidade. O Zoom era o que permitia criar uma relação mais próxima, de confiança, de “um para um” que você não tem com uma equipe. E rápido, sem precisar ir até aquele lugar, sabendo que tem datas tão marcantes e que não dá para estar com todo o mundo. Senão eu não teria conseguido chegar nas pessoas [a tempo], sabe?

V: E por mais que a gente não veja imagens do Zoom, a gente escuta. Muito dos áudios das entrevistas são de conversas de Zoom, tem a sua voz. Então, por mais que o Zoom não tenha aparecido enquanto imagem, no som ele está muito presente.

S: É um dispositivo de encontro. Eu tive a intimidade de falar com eles às 10h da noite, quando todo mundo está em casa, tudo isso vai ajudando a criar algum tipo de relação, de fazer regularmente. É uma coisa que você não vê na tela, mas fez parte do processo do filme. Se a gente não tivesse feito e decidido não usar, a gente nem teria conseguido fazer o que a gente usou.

V: Vocês falaram sobre o desejo de registar esse ano de eleições, tinha esse tema. Mas como é que vocês chegaram nessas pessoas? Como foi feita a pesquisa de personagens?

H: Foram várias etapas. A gente até começou com a ideia de usar os personagens de Voluntário. Foi a primeira coisa: já temos uma rede montada, vamos continuar com eles vivendo esse momento. O segundo momento foi: não, a gente tem que falar da eleição por dentro da eleição, então temos que achar personagens que tenham a ver com a eleição. Daí a Sandra teve essa ideia de chamar a Antonia Pellegrino (roteirista e esposa do candidato a governador do Rio de Janeiro, Marcelo Freixo), alguém que não é exatamente uma candidata, mas que estaria trabalhando na campanha do Freixo. Isso ajudou a pensar nos outros personagens.

Antonia Pellegrino, Rio de Janeiro/RJ
(Reprodução: No céu da pátria nesse instante)

S: Era ainda uma pesquisa assim: catar várias possibilidades. Quando eu estava em Harvard,² eu tinha uns assistentes, jovens estudantes, eles de repente abriram pra gente uma rede de jovens. Teve um momento que o filme ia ser isso: jovens. Pessoas que iam votar pela primeira vez, porque justamente a gente estava falando da falta de futuro, e era uma rede muito legal. Aí depois de um tempo trabalhando com esses jovens, foi parecendo que estava tudo muito parecido, estava todo mundo ali no mesmo momento da vida.

H: E eles também não pareciam tão preocupados que nem a gente, né? Porque eles não sabiam o que era ter democracia ou não. Eles estavam em outra. E tudo muito grande, tinha mais de 80 personagens. A gente tentou uns recortes.

S: Antes tinha um negócio assim: onde é que cada um está vivendo esse ano? Era aberto, era muito amplo. Mas teve um momento chave que a gente falou assim: vamos focar no processo eleitoral. Aí fomos pro TSE.

H: A gente teve muitas dificuldades de conseguir estabelecer conexões com essas instituições, porque estava todo mundo desconfiado. Teve uma barreira que o próprio momento político proporcionou para a gente.

S: Você não tinha acesso a nada porque eles estavam sendo muito atacados. Estavam com medo, todo mundo com medo. Só que aí, pelo mesmo motivo, eles resolveram que era legal eles poderem mostrar o trabalho. A gente fez uma aula com eles para aprender mil coisas e eles abriram possibilidades de acesso, de chegar em pessoas. Ali se abriu um leque de personagens. E ficou claro: são pessoas que vão ter relação muito especial com a eleição.

H: E a gente trabalhou com Bruno Rosa, que é o pesquisador que ajudou a gente a achar pessoas, e a Flávia Castro, que colaborou no roteiro. Ela também apresentou a gente a Neli Belem (professora de sociologia da rede pública, militante do PT-RJ) e a Estela Maria de Oliveira (química, servidora pública federal e presidente de mesa na Zona Oeste do RJ), que são do grupo político da mãe dela. Então tem uma rede do próprio filme que proporcionou esses contatos.

S: É isso. Aí você começa a sentir falta de um perfil de pessoa e alguém conhece.

H: O fato de ter uma produção espalhada pelo Brasil ajuda a ter uma diversidade geográfica. O Ferreirinha (caminhoneiro, morador de São José dos Pinhais/PR), por exemplo, veio através da Desirée Portela (produtora executiva), que é do Sul.

Família de Ferreirinha, São José dos Pinhais/PR
(Reprodução: No céu da pátria nesse instante)

S: Foi muito difícil conseguir personagens bolsonaristas. A gente tentou vários, às vezes a coisa ia, ia, investia… aí o personagem sumia. Aquele começo do filme [um áudio de uma mulher bolsonarista dizendo que só aceitaria participar do documentário se a diretora estivesse inclinada a favorecer o Bolsonaro] não é à toa, né? É um pouco pra explicar isso.

V: Tem essas negociações, que são inerentes ao documentário de entrevista, ao cinema direto, de você estar com uma pessoa, estar filmando e entender o que essa pessoa vai permitir, o que ela vai querer que você acesse. Eu fiquei pensando muito enquanto assisti ao filme: Ok, tem esse grande tema do processo eleitoral, mas o que é que você quer com essas pessoas? Como foi comunicar uma ideia e como vocês dirigiram elas nesse formato remoto, com esse dispositivo?

S: É interessante isso que você está falando. Numa estrutura tradicional de filmagem de documentários, que você chega com uma equipe e aí vai criando uma relação e tal… talvez até exista uma relação de poder um pouco mais desigual, porque quem está ali filmando tem uma noção do que aquilo vai se transformar. Geralmente muito maior do que quem está sendo filmado. Nesse caso, como existiam vários tipos de registro, eram camadas de olhares. Tem imagens ali que as personagens fizeram. E mesmo no filme das vacinas, tinha coisas ricas, que eu não teria tido coragem de filmar, acharia invasivo, mas a pessoa trazia e nos apresentava. Esse dispositivo às vezes permite quase uma inversão do poder. É claro que tem uma encomenda ali, um pedido, um desejo e tal, mas eles também tinham o seu poder, de gravar um negócio, mandar, pra ver se podia entrar ou não.

H: A Neli falou no debate uma coisa que é um sonho pra uma pessoa que faz documentário. Ela deu o exemplo do Pedro Nogueira (assistente de direção), ela esquecia que ele estava lá. Uma pessoa que tá registrando sem ser percebida. A Sandra virtualmente proporcionou essa confiança extrema, porque era uma pessoa que elas estavam convivendo, estava dentro da vida delas, falando com elas semanalmente.

S: Esse negócio da câmera invisível, que é o sonho de quase todo mundo, eu na verdade acredito no contrário. Eu acho que quanto mais visível é o dispositivo, quando as regras do jogo estão dadas, aí todo mundo relaxa. Tem muito mais chance daquilo ser natural. Porque quando o que está acontecendo na frente da câmera é importante para aquelas pessoas que estão vivendo aquilo, não é a câmera que vai impedir. Você não entender o que está sendo feito cria muito mais ruído e muito mais desconfiança, do que uma coisa clara, e isso eles sempre souberam. As regras estavam sempre claras. É o que produz essa relação de confiança.

Registro de 8 de janeiro de 2023, Brasília/DF
(Reprodução: No céu da pátria nesse instante)

V: Dentro desse mar de conteúdo que vocês tiveram que lidar, como foi o processo de montagem? Eu vejo uma narrativa dividida em 3 atos: tem uma apresentação das personagens, e aí tem uma virada de segundo ato, quando começam as eleições em si, do primeiro turno, que vai escalando a tensão até o segundo turno. E termina com o terceiro ato, tem um clímax, a reverberação pós-resultados e tudo o que aconteceu depois. Tem recursos bem ficcionais, que vocês assumem e apostam nisso, com direito a flashforward [da invasão do 8 de janeiro] e uma estrutura multiplot, de várias tramas que vão se cruzando. Como é que foi navegar nesse mar de conteúdo e fazer a seleção que ficou no filme?

S: Esse nosso trabalho realmente é um processo, você vai entendendo à medida que você vai trabalhando. Primeiro, a gente sabia que não tinha suspense nesse filme, porque todos nós conhecíamos o resultado final. Então não podia ser um filme construído sobre: “O que que vai dar essa eleição?” A outra coisa é que eu comecei a sentir que a tensão que a gente tinha vivido não estava tão clara. Toda aquela tensão, aquele medo. Ele não era tão facilmente explicável. E isso levou à ideia de começar com o 8 de janeiro, com uma coisa muito violenta. Então, a pergunta passa a ser: “Como chegamos nisso? Para onde vamos?” Aí, a gente volta para o início do período eleitoral e vai até 8 de janeiro. 

E no processo, começou a ficar claro que, na verdade, o filme era sobre essa tensão, não era sobre tantos personagens petistas, tantos bolsonaristas. Não era essa conta. Quase que não importava aonde o personagem estava, porque todo mundo estava reagindo ao bolsonarismo. Isso é uma coisa também que foi se definindo. Não era claro desde o início. Eu me lembro de pensar: “Poxa, será que está desigual? Tem 2 bolsonaristas.” Mas, na verdade, não é isso. A dificuldade é o assunto. Foram muitos meses de trabalho duro, as coisas foram amadurecendo. 

H: As imagens se impõem. A gente entendeu que o Rio de Janeiro era sobre a milícia, sobre a violência. Todos os personagens ali estão ameaçados de alguma maneira. A eleição lá é sobre tiro, sobre bombas, é uma imposição que a própria realidade dá ao documentário. Do clima de cada lugar, do que aquelas pessoas viveram mesmo. O Ferreirinha impôs que a religião entrasse, era o que ele fazia. Não era uma escolha nossa, ter o pastor. Era o pastor que intermediava o discurso dele, o pensamento dele, a visão de mundo. O Osvaldo (vendedor ambulante que trabalha na Av. Paulista vendendo toalhas e bandeiras com temática política) eram as toalhas, então a gente teve que ir atrás dessa coisa da venda. São coisas que nos chamam a atenção. E tem alguns sentimentos também, as emoções. A Antonia falando dos filhos…

 

Rute Sardinha, Anajás/PR
(Reprodução: No céu da pátria nesse instante)

V: A Sandra falou mais cedo, no debate, que vocês queriam investigar “o que faz da gente um país”, e isso através da “expressão material do que é a democracia brasileira”. Tem a Rute Sardinha (chefe de cartório em Anajás, na Ilha do Marajó/Pará) carregando a urna, tem o pen drive, o papelzinho com os votos sendo colocado no envelope, a Milena (que trabalhou na comunicação da campanha de André Ceciliano a senador do RJ) no celular, ocultando comentários negativos no twitter do candidato, a Neli balançando bandeira, a Estela com o detector de metal, elementos muito visíveis, materiais, concretos, que constituem o processo eleitoral. Isso me parece uma das potências do filme, de se deter nas pequenas ações.

S: Isso foi uma intenção muito clara desde o começo. A gente nunca quis ter um analista. Por isso que eu amei a ideia que o Henrique trouxe para o cartaz [design de João Marcos de Almeida] de mostrar dois vizinhos em vez de mostrar Brasília, a multidão, coisas grandiosas… Trazer para perto. Aquela coisa de menos é mais. Tem uma frase célebre que é atribuída a Humberto Mauro, falava assim: “Não faça um filme sobre os Correios, faça sobre uma carta.” Ali está contido. Então, em vez de você falar da polarização, focar nas pessoas. Acho que só pelas pessoas a gente vai conseguir acessar alguma coisa. Só se a gente conseguir olhar para essa complexidade humana.

Cartaz do filme no Cine Brasília.
Foto de Henrique Landulfo

V: Pela forma como o filme apresenta o Brasil, tem dois grandes Brasis divididos por um abismo: um lado bolsonarista, e um outro lado anti-bolsonarista. Pela reação do público que frequenta o Festival de Brasília, parece ser um público mais inclinado ao lado que estava torcendo pela eleição do Lula. E nós aqui conversando, fazemos parte desse mesmo Brasil, assim como a maior parte dos personagens do filme. E você se coloca também, desde aquele áudio do prólogo, você é citada por aquela mulher como alguém que supostamente vai favorecer “os vermelhinhos”. E o filme encerra com o jingle “Tá na hora do Jair já ir embora”, em tom bem debochado. A sua voz está presente, eu acho isso honesto, é o seu lugar de fala, bem explícito, um posicionamento. Estamos de um lado tentando ver que muro é esse, o que está do outro lado? Como que a gente segue a partir daí? É um filme que coloca muitas perguntas, eu saí com esses questionamentos e um sentimento agridoce, a sensação de que vencemos essa batalha no ano passado, mas a gente talvez esteja vivendo uma guerra. Como vai ser no ano que vem? A gente consegue fazer esse cinema a partir desse formato, inventar esses dispositivos, essas estruturas, mas que outros cinemas são possíveis? Como é que são os filmes do lado de lá do muro? Onde é que estão esses filmes? A gente tem que assinar a plataforma do Brasil Paralelo para ver esses filmes? 

S: Se o filme, como você diz, já enche as pessoas de perguntas e de vontade de pensar e debater, eu acho que isso já deu certo. A ideia da neutralidade é muito curiosa, porque isso é uma preocupação do jornalismo. O documentário está em outro lugar. Um filme é um olhar, por isso a gente assina o filme. Não é vaidade, é humildade. Você está dizendo assim: “isso aqui sou só eu, é só um filme”. Põe uma data, porque pode ser que, eu mesma, daqui a 2 anos com isso, faça outra coisa. Um filme, para existir, tem que existir um autor genuíno, mas não uma falsa neutralidade. Eu também sou uma cidadã brasileira. Eu voto, claro que eu tenho uma opinião. Tem que partir daí. Agora eu também tenho uma curiosidade genuína de ouvir essas pessoas. Tenho perguntas para fazer, e isso é que torna o filme um filme, e não uma peça de propaganda. A minha sensação seria assim, como é que são os filmes do lado de lá? De tudo que eu vi, eu só vejo propaganda. Nunca vi filme. Essa diferença é muito importante.

Notas:
1. Recomendo a leitura do texto de Luiz Zanin, que descreve um pouco mais sobre como foi a sessão de estreia: https://www.estadao.com.br/cultura/luiz-zanin/brasilia-2023-2-documetario-no-ceu-da-patria-nesse-instante-sobre-a-tentativa-de-golpe-de-8-de-janeiro-poe-fogo-no-festival-de-brasilia/

2. O filme faz parte do projeto THE SPEECH MACHINE, desenvolvido com o apoio do Radcliffe Institute for Advanced Study at Harvard University, graças a uma residência em 2021/2022.

Entrevista por Vitã