O Evangelho segundo Luís Capucho, ou Sete Mergulhos para um Peixe Abissal

*Uma versão rascunhada deste texto foi lida na Mostra de Cinema de Tiradentes, em 26 de janeiro de 2023, durante o debate sobre o filme Peixe Abissal (2023), de Rafael Saar, do qual participei como crítico convidado, representando a Revista Moventes.

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Primeiro mergulho. Antes de seguir para o aeroporto Santos Dumont, de onde sairia a van que me levaria para Tiradentes, desço do metrô na Cinelândia e, como que atraído por espectros do passado, não resisto a seguir os passos de Luís Capucho. Preciso olhar a entrada do templo sagrado que ele frequentava. Não estou falando do Cinema Pathé, que hoje virou igreja evangélica, mas do verdadeiro templo, aquele da profanação, fechado há algum tempo, e no qual nunca pisei. A fachada do Cinema Orly estava lá, abandonada e descaracterizada, ostentando uma placa de “aluga-se”. Tiro uma série de fotos rapidamente, com medo de ter o celular roubado no centro da cidade, um tanto deserto àquela hora da manhã. Uma vez feito esse registro, pego o VLT até o aeroporto. Já na van, ao dizer que iria participar do debate sobre Peixe Abissal, um amigo brinca que, se havia algum lado positivo para o filme ter demorado a ser finalizado, um deles seria o fato de eu ter sido chamado pra falar sobre ele, que antes eu seria “novinho” demais para tal. Retruquei que, de minha parte, o timing era favorável, não porque eu fosse tão jovem naquela época (se o longa tivesse sido finalizado antes da pandemia, em 2017 ou 2018, eu teria uns 27 ou 28 anos), mas porque teria menos a dizer sobre ele do que hoje em dia, pois me faltava “bagagem” sobre o assunto. Afinal, àquela altura, eu nunca tinha ido a um cinemão como aquele que o próprio Capucho reabre nos primeiros planos do filme.

Luís Capucho revisita o abandonado Cinema Orly. Peixe Abissal (Rafael Saar, 2023)

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Segundo mergulho. Não cabe aqui fazer um panorama histórico extenso sobre a questão do cinema pornô. Mas vale salientar brevemente que atos sexuais facilitados pela escuridão das salas de cinema não são novidade decorrente da suposta decadência dos cinemas de rua nos anos 1980, mas práticas fartamente documentadas (e ativamente combatidas) desde os primórdios da exibição cinematográfica enquanto negócio. Através de vestígios literários e jornalísticos, pesquisas como a de James Green (2000), por exemplo, relembram como os cinemas das imediações do antigo Largo do Rossio (atual Praça Tiradentes), no centro do Rio, sempre forneceram oportunidades de flerte e pegação para “frescos” e “fanchonos” na “bela época” carioca…

Nas salas de cinema convencionais, espera-se uma certa “situação-cinema” comportada, ou seja, um espectador “passivo”, imóvel, silencioso, assistindo ao filme. Bem diferente é o convite do cinema pornográfico, com sua dança dos corpos a procura de pegação no breu, sendo uma experiência cinematográfica que desloca a ênfase da visão e da audição, mobilizando os demais sentidos (o olfato, o paladar e, particularmente, o tato) em seus extravasamentos libidinosos. O cineMÃO (fazer gesto de punheta ao ler a última sílaba) profana a experiência cinematográfica em sua forma pudica e supostamente sacralizada; seus espectadores, além de “passivos”, podem ser “ativos”, ou até “versáteis”, se quiserem. Dentre os mais de setenta textos literários latino-americanos ambientados em cinemas pornôs analisados por Helder Thiago Maia (2018) em sua tese de doutorado, uma obra se destaca por não apresentar o espaço em questão como simplesmente “abjeto”, mas como convidativo a experiências complexas e multissensoriais: trata-se da novela autobiográfica Cinema Orly, de autoria de Luís Capucho, publicada em 1999.

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Terceiro mergulho. Não é todo dia que um cineasta consegue filmar um fiel no seu antigo templo de adoração. Peixe Abissal começa com Capucho descendo as escadas do Orly, que evocam memórias com cheiro de porra e de baratas – ou seja, para ele, lembranças amorosas. Uma ratazana morta por baixo das poltronas antecipa as ratazanas que virão? Ele liga o projetor e, uma vez mais, se torna ícone dessubjetivado em frente às imagens pornográficas exibidas na tela e projetadas sobre seu corpo.

Capucho retorna ao interior do Cinema Orly. Peixe Abissal (Rafael Saar, 2023)

Nesta e em outras sequências ainda mais explícitas, Saar reencena, com a presença do próprio Capucho, a fascinante ritualística orgiástica do cinemão, retomando a intersecção entre pornografia e religiosidade expressa em diversas passagens de Cinema Orly. Assim disse Capucho:

No Orly, éramos todos anônimos, nem mesmo a vendedora de balas tinha um nome para mim. Éramos só uma imagem e estava descobrindo o quanto isso era bom. Éramos exatamente como os atores que trepam nos filmes, com exceção de sermos de carne e osso, portanto mais saborosos. Pensava sempre naquela história de que a verdadeira obra de arte interfere, modifica o receptor e ao ver o público do Orly interagindo tão infernalmente com os filmes na tela, achava que lá os filmes eram verdadeiramente obras de arte.
Antes de beijar um homem, achava que vê-lo nu, aberto, os pêlos amaciando a atmosfera, saco e pau escancarados junto ao tufo de pentelhos, era encontrar Deus. Depois, achei que Deus fosse beijar um homem: logo o Orly era mesmo para mim uma religião.
Tinha os caras que não gostavam de beijar. Perdia-me, então, nas igrejas que eram os seus paus e rezava um boquete com um dedo enfiado no cu. Às vezes, era mesmo ajoelhadas, entre as pernas de um bofe na poltrona, em posição de adoração, que as bichas se esmeravam em seu papel. (CAPUCHO, 1999, p. 73)

Para Maia, fragmentos como estes configuram verdadeiros “terrorismos textuais” de Capucho, na medida em que expressam uma “violência metonímica” contra as normatividades sacramentadas que “se constrói repetidamente pela comparação do espaço e dos clientes do cinemão com o espaço da igreja e dos seus fiéis” (MAIA, 2018, p. 279). Tais trechos me exercem um certo fascínio, talvez por eu ser uma bicha ex-evangélica (ou seria uma bicha evangélica queer, discípula de Marcella Althaus-Reid?), e amar reconhecer os códigos do cristianismo hegemônico ressurgindo profanados nos lugares mais inusitados. Saar retoma em imagens e sons a tradição capuchana. Singelos terrorismos visuais. Um desbotado quadro de Cristo pendurado no teto enquanto Capucho datilografa uma canção na máquina de escrever, e a canção em off repete, incessantemente: Os caralhos são flores pra mim. Numa sequência anterior, enquanto Capucho pendura flores numa cerca de arame farpado (caralhos na coroa de espinhos?), a canção declara: homens machucados eram mais bonitos pra mim, belos como Cristo na cruz, um misto de música evangélica e balada erótica que ecoa outro trecho do livro, em que Capucho evoca as “pinturas renascentistas católicas, onde Cristo, Maria, Maria Madalena, Verônica, ou os anjos, os apóstolos, todos têm cara de prazer ou desejo sexual que se parece muito com a expressão de dor.” (CAPUCHO, 1999, p. 100)

Profanação da iconografia cristã em Peixe Abissal (Rafael Saar, 2023).

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Quarto mergulho. Talvez aqui eu devesse contar alguma putaria que eu tenha feito ou presenciado em minha visita ao Cinema Íris. Pro texto ter um quê de autobiográfico. Não sei, fico em dúvida, seria muita exposição para a respeitável (ler com ar solene, mas debochado) TI-RA-DEN-TES? Acho que vou deixar pra imaginação de quem me ouve (ou de quem me lê). Mas não resisto a contar uma anedota pseudoteórica. No caso, o que eu queria contar é que uma das travestis que eu conheci lá me confidenciou que as dançarinas que estavam performando no dia eram todas sapatonas — uma delas era namorada da DJ, inclusive. Então havia uma grande encenação acontecendo ali no cinemão: os homens que buscavam estímulo nas strippers nuas estavam buscando mesmo era sexo entre si; e as sapatonas, que se despiam e fingiam algum interesse nos clientes, na verdade não tinham… nenhum. Talvez a palavra fingimento não seja suficiente. Talvez seja através desse jogo mesmo — na evidência de que é tudo uma encenação — que aquelas trabalhadoras estimulem os desejos daqueles frequentadores. E eu, mesmo sendo bicha, entendo completamente sentir tesão pelo flerte heterossexual ou por ver heterossexuais transando. É algo de que Capucho fala muito em seu livro e, por incrível que pareça, considero esse meu principal ponto em comum com ele. E acho estranhíssimo quando heterossexuais fazem filmes supostamente “radicais” mas que são tão somente alegorias sobre sua própria castração, quando provavelmente gostariam de ter filmado… uma cena de sexo. Ninguém pediu pra vocês pararem de transar, héteros, só pedimos que saibam que sua forma de transar não é a única sancionada por Deus — na verdade, ninguém precisa dessa sanção, né. Quanto mais gente fodendo, melhor. Contanto que nos deixem em paz, contanto que nos deixem foder do nosso jeito. Eu teria gostado de ver essa cena de sexo hétero naquele outro filme da Mostra Aurora… Eu teria tido tesão. Enquanto imagino essa cena que não existiu, me pergunto: Será que a Cine Tenda tem potencial pra Cine Íris? Naquele dia, no Cine Íris, a stripper começou a dançar “Te Amo”, da Rihanna, e eu fiquei petrificado quando o globo de luz espelhado se acendeu repentinamente, banhando todo o cinema com seus inúmeros focos luminosos. Tive uma espécie de epifania e, emocionado, chorei, sem saber exatamente o porquê.

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Pedro Paz, companheiro de Capucho, filmado por ele através de uma câmera Super 8. Peixe Abissal (Rafael Saar, 2023)

Quinto mergulho. No fluxo de imagens do filme, surge o videoclipe de “Eu quero ser sua mãe”, filmado lá em 2012 e que deu origem ao projeto como um todo. Nele, em vez de buscar uma ilustração dos versos da canção, com sua nudez entre baratas e formigas na pegação do cinemão, Saar propõe que Capucho capture ele mesmo, através de uma câmera Super 8, seus momentos cotidianos de intimidade com seu companheiro, Pedro Paz. Aparentemente contraintuitiva, essa inusitada junção entre as imagens de arquivo e as palavras cantadas afirma algo que me parece bastante coerente com o universo capuchano — o quão indiscernível é o amor praticado dentro e fora do cinemão.

A referência aos instintos maternais volta à tona logo após uma das primeiras aparições de Teuda Bara interpretando a já falecida mãe de Capucho, quando ouvimos a jovem voz do artista cantando uma misteriosa declaração de amor em “Mamãe me adora” (1995):

Mamãe me adora
Profundamente ela me quer
Mais do que quis outros homens
Que ela também amava
Que ela também devorava
Ciganos, pedreiros, patrões
Com seus outonos e chuvas
E furacões (…)
Eu também sou feliz com homens
Como os que amou mamãe
Homens que são
Cheios de tensão
Como diabos
Homens que são
Como Aparição
Como Nossa Senhora (…)

Me tocam profundamente as obras que abordam as relações de afeto entre as bichas e suas mães — e que as complexificam, para além de um simples gesto de gratidão ou reverência vazio. Aqui, mãe e filho se encontram na sexualidade, na intempestividade, na promiscuidade — e, portanto, na religiosidade. Ao fim da canção, as luzes da Cine Tenda se acenderam de repente, e as coloridas luzes estroboscópicas começaram a rodopiar, permanecendo assim por um bom tempo. Me arrepiei com essa falha técnica (como estou sensível ultimamente…), pensei na rima visual com a iluminação do Cine Íris. Depois, pensei que era a relação espectral daquela mãe e seu filho querendo transbordar da tela. Uma espectralidade cuidadosamente costurada através da mistura entre as imagens de arquivo e a inesquecível interpretação da atriz, que culmina na memorável e derradeira visita ao Santuário Nacional de Nossa Senhora Aparecida. No cinema, a mãe morre duas vezes e, no entanto, insiste em permanecer viva, embalsamada em forma de imagem.

A mãe acende velas em Aparecida tanto nas imagens de arquivo quanto na reencenação. Peixe Abissal (Rafael Saar, 2023)

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Sexto mergulho. Em cortes rápidos, Capucho convulsiona caído no chão, em paralelo com uma barata (do Orly?) que contorce suas pequenas patas — imagem e som convulsionam junto, se perdem nos corredores do hospital. Em vez de construir uma história de “superação” a partir da metade do filme, Saar apresenta antes de tudo uma linha do tempo embaralhada, elíptica, acompanhando os pequenos gestos de retomada artística do personagem de maneira fragmentada. Nesse sentido, é acertada a escolha de Saar de usar poucas faixas do álbum Antigo — de 1995, único registro da sonoridade da voz do cantor antes das sequelas da neurotoxoplasmose e do coma decorrentes do quadro de AIDS que desenvolveu em 1996 — e priorizar, na trilha sonora, faixas de seus trabalhos posteriores, como Lua Singela (2003) e Cinema Íris (2012), álbum irmão do livro Cinema Orly. Para Saar, interessa muito mais abraçar o novo timbre de Capucho, apresentar ao público que ainda não conhece sua obra a versatilidade que o artista consegue extrair de uma, duas, ou três notas musicais. Suas supostas limitações motoras são, para o cineasta, potência de criação. Já não o eram para Capucho? Onde termina Capucho e começa Saar neste filme? Em dado momento, a voz de Capucho afirma: “Faço ficção biográfica. Mas não deixa de ser ficção por isso.” Não seria Saar falando através de Capucho? Inútil tentar localizar essa fronteira, ela é líquida e translúcida. Encontro entre oceanos.

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Criaturas marinhas nos créditos iniciais. Peixe Abissal (Rafael Saar, 2023)

Sétimo mergulho. Há também, além da questão da mãe, a questão da água (que, na verdade, estão interconectadas). Analogias aquáticas pululam por toda parte na obra de Luís Capucho. Por exemplo, as imagens de arquivo subaquáticas e carnavalescas dos créditos iniciais se desenrolam ao som de “Peixe”, outra canção do álbum Cine Íris e principal inspiração para o título:

Eu vivo sempre no fundo do meu peito
Eu vivo só mergulhado
O céu cai como um mar entre os edifícios
E eu ando na rua embaixo feito um peixe

Em Cinema Orly, não são poucas as passagens que comparam o cinemão a “um lugar mitológico onde Eros temia que o vissem, que o iluminassem”, a águas profundas, abissais, onde se desenrolava uma verdadeira “festa de répteis, peixes, dragões” (CAPUCHO, 1999, p. 102). E são as águas que mediam a recuperação motora de Capucho. Em Peixe Abissal, os momentos de hesitação de Capucho em se lançar nas águas — seja na beira da piscina, de um rio ou do mar, que por vezes se misturam entre si através da montagem — podem ser compreendidos pelo menos de duas formas: como alegorias de sua intermitente dificuldade de adesão aos medicamentos antirretrovirais, mas também como reflexões sobre sua condição de artista taxado como “marginal”. Essas duas dimensões não estão dissociadas na obra do compositor e, como relembra Jacqueline Figueiredo (2011, p. 117), são abordadas em “A música do sábado”, outra faixa presente no longa:

Poucos fazem como faço 
Que estou sempre na beirinha (…) 
Caminho mais um pouco na beirada onde estou 
Tomo remédios e continuo 
Da beirada vejo o céu aberto
Penso um pouco 
Olhando para o mar  
Olho para o vazio  
Olho para mim (…)

Passada a breve hesitação, ele se lança nelas. De novo. E de novo. E mais uma vez.

Capucho à beira da piscina. Peixe Abissal (Rafael Saar, 2023)

Embora presente nas obras do personagem biografado, a construção da narrativa ao redor desse elemento evidencia um olhar muito específico do biógrafo realizador. Certamente é possível escrever uma dissertação ou tese sobre “A Água no Cinema de Rafael Saar” — já consigo imaginar até o título! Seria muito academicismo de minha parte? Se no final de Homem-Ave (2010), o simulacro de Ney Matogrosso mergulha nas águas do mar, aqui o próprio Ney, numa espécie de continuação do curta de Saar, ressurge das profundezas como Homem-Peixe cantando “Destruição”, concretizando um desejo antigo e adiado de gravar uma canção de Capucho.

Ney Matogrosso performa “Destruição”. Peixe Abissal (Rafael Saar, 2023)

Do outro longa de Saar, Yorimatã (2015), ainda guardo viva na minha memória a ligação das cantoras/amantes Luhli e Lucina com as cachoeiras, mediada pela Umbanda. Elas escolhem se recolher por um tempo, como uma onda que retrocede antes de ganhar força e avançar novamente na areia, tal qual este filme espera passar o período sombrio do genocida no poder para ressurgir num momento em que possa evitar possíveis retaliações institucionais e censura. Em Peixe Abissal, são as sereias — Aparecida, Oxum e Iemanjá, que, afirma o narrador, guardam parentesco entre si — que levam mamãe para o além. São elas também que, ao final da Via Crucis, através da dançarina do Íris, oferecem o colo materno por excelência, aquele da Pietá, e guiam Capucho para seu derradeiro nado em águas profundas. De volta ao líquido amniótico, ele, nu, emite luz própria em meio à escuridão, tal como nos corredores do Cinema Orly.

As sereias guiam Capucho até as águas profundas. Peixe Abissal (Rafael Saar, 2023)

Por Jocimar Dias Jr.

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Agradeço a Denilson Lopes pelo empréstimo de seu exemplar do raro Cinema Orly para leitura a tempo de minha fala. 
Este texto é dedicado à memória do querido Luiz Giban. 

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Referências bibliográficas 
ALTHAUS-REID, Marcella. Deus Queer. Rio de Janeiro: Editora Metanoia, 2019.
CAPUCHO, Luís. Cinema Orly. Rio de Janeiro: Interlúdio Editora, 1999.
FIGUEIREDO, Jacqueline. Cheio de vida, o lume do nosso coração se acende: A vivência com hiv/aids a partir de encontros com Luís Capucho. Dissertação (Mestrado) – Universidade Estadual Paulista (Unesp), Faculdade de Ciências e Letras. Araraquara, 2021.
GREEN, James. Além do carnaval: A homossexualidade masculina no Brasil do século XX. São Paulo: Editora UNESP, 2000.
MAIA, Helder Thiago. Cine[mão]: espaços e subjetividades darkroom. Salvador, BA: Editora Devires, 2018.