Imagens apesar da morte: “O dia da posse” e a fabulação de um mundo possível

Em O dia da posse (2021), Allan Ribeiro nos apresenta um documentário que se abre ao campo ficcional. Nesse sentido, enquanto acompanhamos a trajetória de Brendo Washington, no contexto da pandemia da Covid-19 no Brasil, acontece, também, um encontro de uma possibilidade de cinema – e o que pode a imagem em um contexto fílmico. Se, na quarentena que vivemos em decorrência da transmissão do Sars-COV2, fazer imagens se tornou um modo de dar a ver a nossa vida cotidiana, ser visto e ser lembrado, o longa-metragem de Ribeiro ultrapassa a dimensão confessional por meio da fabulação. 

Ribeiro é um cineasta carioca, cuja obra nos oferece formas de pensar o cinema enquanto lugar de comunhão e de invenção. Ele apresenta uma forma de filmar a casa que se destaca de outras práticas de mostrar o espaço doméstico na história do cinema. No seu trabalho, Ribeiro se diferencia de cineastas como Jonas Mekas, cuja construção de filmes-diário como Ao Caminhar Entrevi Lampejos de Beleza (2000) se baseava em registrar, diariamente, os mais diversos acontecimentos para que, anos mais tarde, fosse possível montar um longa-metragem. Para Mekas, fazia-se necessário filmar e montar para que a memória não se perdesse e fosse transformada. Para Ribeiro, é preciso estar presente, registrando e filmando o espaço doméstico, para que ele ressignifique e exista — em sua obra, a casa é um espaço de cinema. Podemos observar esse gesto de criação em seus filmes anteriores. Para este texto, comentarei brevemente sobre os movimentos presentes em Esse Amor Que Nos Consome (2012) e Mais Do Que Eu Possa Me Reconhecer (2015). 

Em Esse Amor, a casa é uma protagonista e, também, um cenário de conflito. Desde o início do filme, anunciam-se as dúvidas acerca de um espaço que tem alto valor no mercado imobiliário, mas que, naquele momento, abriga e é habitado por artistas que montam um espetáculo que dialoga com as religiões de matriz africana e com a cultura negra, ainda que em um cenário econômico desafiador. Em Esse amor, a casa é chamada de Terreiro, no reconhecimento de que uma parede e um chão podem ser mais do que estruturas materiais-físicas, dependendo daqueles que a habitam. Nesse filme, em uma das cenas finais, coloca-se, sobre a placa de “Vende-se”, uma bandeira feita pelos mais diversos retalhos coloridos. Essa bandeira se sobrepõe ao índice que sustentava propaganda para os compradores — que estavam do lado de fora. Se, nesse longa-metragem, é afirmado que foi o Orixá Iansã — que, dentre várias leituras, pode ser entendido como uma vibração divina que está no campo do enfrentamento e do direcionamento dos caminhos —, quem figura ao lado da bandeira que é colocada é alguém cujas vestes nos lembram Exu. Se o consideramos como guardião das encruzilhadas, é notável que ele se situe do lado externo daquele prédio, agindo na proteção daqueles que estão dentro em um momento de conseguirem – ou não – manterem-se na casa.

Em Mais Do Que Eu Possa Me Reconhecer (2015), a casa é revelada como um espaço seguro, protegido, apesar de um cenário de violência urbana, em que há troca de tiros, dentre outros elementos. E o cinema é a linguagem que permite organizar e alterar processos de reconhecimento de si e do outro. Na abertura do filme, por exemplo, Ribeiro nos mostra Darel, a partir da imagem de um espelho. Em seguida, vemos que esse usa uma pequena câmera digital e realiza os seus próprios registros, antes que ceda à imersão no filme no qual é dirigido. Darel avisa: agora vamos entrar no seu filme, ao mesmo tempo em que questiona a relevância de fazê-lo com a câmera de Ribeiro, mais cara e maior que a sua. Assim, podemos perceber que, apesar de corriqueiras, também os espaços de quem filma – e é filmado – são campos de disputa pelas perspectivas e modos de dar a ver. O que, veremos, é retomado em O dia da posse, quando Brendo e Allan conversam sobre cinema e dialogam sobre o fato de Brendo aceitar ou não os comandos de direção cinematográfica de Ribeiro. 

Numa casa, temos estabelecida a linha tênue entre o lado de dentro e o lado de fora. Basta, por exemplo, que abramos a porta ou uma janela para que o que perpassa o externo possa irradiar para o interno. Na pandemia da Covid-19, porém, esse fino limite se contorceu e estabeleceu novos desafios. O lado de fora se mostrou hostil e perigoso, colocando-nos, de forma muito intensa — e, de algum modo, despreparados – para vivermos e con-vivermos do lado de dentro com os mais intensos desafios de sociabilidade. Nesse ínterim, realizar imagens de si e postá-las nas redes sociais se tornou uma forma de tentar, ainda, atingir e comunicar-se com o lado de fora. Basta, por exemplo, lembrarmos como, em certa altura da pandemia, ver e participar das lives se tornava um modo de nos encontrarmos e partilharmos de uma esfera comunitária que, se não era a nossa casa, também não era a rua, nem o asfalto. Esse fazer de imagem também se colocou como recurso para enfrentar – ou, ao menos, tentar – o medo e a tristeza de um período histórico trágico, com alto número de mortes diárias e crise econômica. De forma semelhante, em O dia da posse, a câmera e a imagem permitem não apenas tentar trespassar os desafios que existem no isolamento, mas tentar sonhar com um mundo outro, em que haja um cenário político distanciado do Brasil contemporâneo. Fazer um filme caseiro se situa, assim, como ferramenta de resistência em um cenário distópico, caracterizado por uma  crise sanitária sem precedentes neste século. 

Jean Louis Comolli, escritor e cineasta francês, escreve no texto Sob o risco do real, em que se debruça sobre o documentário: “Longe de ‘toda-ficção de tudo’ o cinema documentário tem, portanto, a chance de se ocupar das fissuras do real, daquilo que resiste, daquilo que resta, a escória, o resíduo, o excluído, a parte maldita” (COMOLLI, 2001, p. 99). No contexto de uma pandemia, a noção do risco ganha outros contornos. Se sair de casa representava a probabilidade de se expor a um vírus com potencial mortal, permanecer em isolamento se colocava, de algum modo, como estratégia de proteção e de controle; oferecia, porém, os desafios psíquicos e mentais de convivência familiar e solidão. Não é por acaso que, ao final de O dia da posse, o que irá demarcar a ida do lado de fora é o uso da máscara de proteção, cobrindo o nariz e a boca. Nesse cenário, sair de casa era viver, nas ruas, a visceralidade da possibilidade de contágio e as máscaras, a proteção contra. 

Em O dia da posse, temos uma referência a dois tempos de imagens distintos: o tempo em que o jornalismo televisivo tinha maior alcance na informação e formação de personalidade dos indivíduos e o tempo das redes sociais. A discussão do que seria adequado ao jornalismo está, inclusive, presente em uma das cenas iniciais do longa-metragem, na qual o cineasta pergunta a Brendo sobre como ele pensara em fazer a chamada do filme. Brendo sonha: cria a chamada “O filme consagra a história de Allan Ribeiro no cinema do Brasil”. Assim, deseja, também, o próprio reconhecimento pela atuação no filme que está estrelando. Ribeiro, porém, questiona-o e afirma que o jornalismo não é um campo poético. Entretanto, ao longo do filme, é apontado como que a pretensa objetividade do jornalismo fundamenta campos subjetivos. A partir dos sonhos e desejos pregressos de Brendo de ser presidente da República, apresenta-se que, para aqueles que assistem a televisão, ela é o campo do sonho e da idealização. 

Em um cenário pregresso, quando não havia internet, o acesso às imagens, especialmente audiovisuais, dava-se primordialmente pela televisão e pautava-se, muitas vezes, em desejos de estrelato e fama. Em um contexto de pandemia de Covid-19, as imagens se colocaram outra vez no campo do sonho. No período de vigência da pandemia de um vírus cuja contaminação poderia ser fatal, ficar em casa e usar o celular para fazer stories ou videochamadas, dentre tantas outras atividades, situou-se como uma ferramenta – e uma engrenagem – de crer e esperar que outro mundo fosse possível. Não é por acaso que, conforme Brendo nos fala no filme, durante a pandemia da Covid-19, todos começaram a fazer bolos e vemos, pelas janelas, as pessoas se exercitando em horários inesperados, como a madrugada. Se não era possível que houvesse encontros presenciais, criar uma imagem de si com maior desempenho e alegria – fosse cozinhando, fosse malhando -, era uma ferramenta contra a pulsão de morte que estava correndo em todas as ruas e em todos os hospitais.

O campo da política é também o lugar do sonho e do desejo de mudança. Em um cenário macropolítico, é ele que possibilita, por exemplo, que sejam eleitos candidatos que possam atuar conforme planos de governo – e de ideologias – distintos. Na história brasileira, temos uma trajetória política em que isso se acentua – e faz vibrar o coração e o desejo de muitos pobres. Luiz Inácio Lula da Silva, Lula, vem de origem humilde, sem ter completado a formação escolar e foi mutilado durante o exercício do trabalho e consegue chegar à presidência. Quando Brendo nos diz que, para si, quando mais novo, era quase certo que, quando ele ficasse mais velho, seria presidente do Brasil, ele não expressa apenas as perspectivas de desejo de um ser individual. Ele também traz consigo a narrativa de um país que, há alguns anos, tinha no presente e no cotidiano um cenário de otimismo, que alimentava as perspectivas de futuro de todos os cidadãos do país. Se Brendo afirma que “Até você descobrir que é pobre, você romantiza”, ele também nos confessa a impressão que houve um tempo-espaço quando o pobre pode romantizar uma vida outra, que não aquela de sofrimento intenso e sem limites. No Brasil contemporâneo, porém, esse cenário está arrefecido, tendo em vista o aumento da desigualdade socioeconômica e a vigência de um governo que desdenha da vida na mesma medida que desdenha da morte. Basta recordarmos como o governo Bolsonaro fez piadas em torno do número de mortes diárias que tivemos em nosso país e o sarcasmo com o qual se referiu aos coveiros.

O lugar do uso da voice-over em O dia da posse e o modo como a linguagem da entrevista é modulado pode ser aproximado, de algum modo, de Eduardo Coutinho, quando realizou Jogo de Cena (2007) e As Canções (2011). Tendo trabalhado como jornalista, Coutinho, no decorrer de sua obra, deu a ver os tensionamentos que existem na imagem que se propõe mostrar a realidade. Consuelo Lins, pesquisadora e professora da UFRJ, ao analisar sua obra, afirma:

O documentário que interessa não reflete nem representa a realidade, e muito menos se submete ao que foi estabelecido por um roteiro. Trata-se, antes, da produção de um acontecimento especificamente fílmico, que não preexiste à filmagem. Nas obras de Coutinho, o mundo não está pronto para ser filmado, mas em constante transformação, e ele irá intensificar essa mudança.  (LINS, 2004, p. 9)

Se partimos dessa perspectiva, podemos compreender que, se há câmera, a realidade se modifica. Brendo, em O dia da posse, afirma que, em frente a uma câmera, ninguém é cem por cento verdadeiro. Ribeiro, tal como Coutinho, reconhece essa possibilidade e coloca-a em trabalho para que os modos de representação dos outros – e de si – sejam tensionados e transformados pelo cinema. E, tal como Coutinho, Ribeiro se insere na imagem, seja aparecendo com o seu corpo e rosto, seja pela voz em off. Uma das cenas em que isso é mostrado com muita intensidade é quando é filmado um espelho, com vestígios de sangue, e Allan pergunta ao protagonista o porquê daqueles respingos estarem ali. Nesse momento, vemos não somente a superfície espelhada sanguinolenta, mas também o reflexo daquele que, se filma, também é filmado. E que se vai ao encontro da intimidade daquele que filma, revela, também, como reage a ela. 

Em O dia da posse, Brendo menciona com frequência a sua devoção pelo Big Brother Brasil. Afirma, porém, que só gostaria de aparecer no programa quando estivesse com sua carreira profissional plena e estabelecida. O programa televisivo se insere, assim, não em um campo de poder oferecer-lhe dinheiro e estabilidade financeira, mas de prover um campo emocional e anímico. Assim, depois de ter sido visto e assistido por anos por Brendo, o Big Brother se situa, emocionalmente, como uma possibilidade de coroar uma vida do lado de fora. Não se trata de fazer a fama ali, mas sim chegar à televisão depois de ter precisado passar por todas as agruras não televisivas de ter nascido pobre e, no projeto de Brendo, conseguir ser advogado, médico e presidente da República. E, enquanto isso não acontece, temos, ao menos, um filme que Brendo considera experimental, possibilitando que, se não todos os brasileiros, alguns possam assistir seu discurso – e a sua própria vida. 

O dia da posse (Allan Ribeiro, 2021)

*Texto inspirado pelo convite para ser mediadora do debate de O dia da posse, no Cineclube Paratodos, no dia 13/08, em Botucatu, no interior de São Paulo. Para acompanhar a programação do Cineclube, acesse: https://www.instagram.com/cineclubeparatodos/
Referências bibliográficas:
COMOLLI, Jean-Louis. “Sob o Risco do Real” In: Catálogo do forumdoc.bh.2001 – V Festival do Filme Documentário e Etnográfico de Belo Horizonte. Belo Horizonte: Filmes de Quintal, 2001, p. 99-108.
LINS, Consuelo. O documentário de Eduardo Coutinho: televisão, cinema e vídeo. Rio de Janeiro: Zahar, 2004.