Flora Dias é diretora de fotografia e realizadora, residente em São Paulo. Estudou cinema na Universidade Federal Fluminense e cinematografia na França. Fez curtas e longas em parceria com Felipe Bragança, Juliana Rojas, Caetano Gotardo e Marina Person. Dirigiu os curtas Praia de Botafogo e Ocidente e o longa O Sol Nos Meus Olhos.
Como foi sua aproximação com o cinema e mais especificamente com a fotografia?
Com o cinema foi mesmo na faculdade. Eu nunca fui cinéfila, no sentido de assistir muitos filmes de uma maneira sistemática. Eu tenho uma ligação muito forte com a imagem, minha mãe fotografava, tive câmera fotográfica desde pequena. A gente morava num lugar muito bonito e eu tinha uma relação com a luz de uma maneira massa, tentava sacar como o sol se comportava e como as luzes mudavam. Quando eu era criança queria ser atriz, na verdade. Mas, quando eu fui fazer intercâmbio nos Estados Unidos, fiz uma matéria que me levou a trabalhar na TV da escola e aí eu gostei muito da coisa artesanal, botar a mão na massa e acho que foi por isso que acabei fazendo fotografia. Quando eu entrei na UFF, queria ser eletricista e no primeiro semestre fui atrás do Lerr, que trabalhava com elétrica, ele e o Vlad. Falei pra eles que queria ser assistente deles, então comecei fazendo elétrica e foi assim, de elétrica eu fui fazer câmera meio que naturalmente, porque na UFF você acaba fazendo de tudo um pouco.
O que você acha que contribuiu e tem contribuído para sua formação estética?
Eu sempre tirei bastante foto, gosto muito de fotografar. Na época que fiz um Instagram, foi ótimo porque retomei uma coisa que eu tava perdendo, de pensar em como registrar as coisas que estão acontecendo em volta de mim. Eu também não sou uma pessoa que tem uma relação muito sistemática com arte, eu nunca tive aula de desenho, de história da arte, não manjo muito, mas gosto de ver, vou a exposições, a museus e gosto do que vejo e eu me sinto tocada, aquilo me emociona. E tem sempre uma relação de narrativa também, de criar imagens porque eu acho que elas estão criando uma narrativa, como elas contam alguma história. Então, nesse sentido, eu acho que é bastante cinematográfica minha relação com o mundo. Eu não estou interessada em criar imagens bonitas, acho que elas são bonitas pela força que elas têm, pelo que elas significam, em que contexto elas estão colocadas, quem está nelas. Acho que a intimidade é bonita, a proximidade é bonita, eu acho que todas as pessoas são lindas de perto, porque é isso, é quando você se permite conhecê-las. As imagens que eu crio são a expressão da relação que estou criando com aquilo que eu estou fotografando, filmando.
Como você se relaciona com a parte técnica da direção de fotografia?
É muito doido isso, porque estou cada vez mais desconstruindo esse meu interesse pela parte técnica, apesar de ter tido uma formação muito forte nisso. Quando fui estudar na França, tive aulas muito específicas, de ótica e tal. Considero que eu tenho um conhecimento de fotografia bastante técnico, mas tenho dado muita chance para o acaso. Por exemplo, eu coloco a câmera e eu não sei qual diafragma está, aí eu olho, acho bonito e acabo mantendo aquilo. Tenho desprezado muito o que pode ser considerado um erro, não me apego a esse tipo de exigência. E aí, acontece o acaso, eu tenho uma imagem que é bonita e que eu não cheguei nela de uma maneira técnica, planejada, calculada, mas acabo fazendo uma leitura técnica: está lindo porque está subexposto, porque está um pouco desequilibrado. Minha busca tem sido essa e a minha formação está em mim, é inevitável. Hoje em dia, em termos de operação de câmera, uma busca que tenho feito, já que não tenho mais aquele frescor de não saber o que está sendo construído, afinal, eu já faço isso há muito tempo e nem é só questão de vício não, é também questão de gosto, acabo repetindo coisas. Porque eu acho que são bonitas, porque eu gosto delas. E tem também uma naturalização do meu jeito de ser, da maneira de me expressar, a minha personalidade está no que eu faço. Mas eu tenho tentado me desconstruir mesmo assim, o que é muito difícil. Tenho tentado fazer isso de uma maneira prática, trabalhando, por exemplo, com equipes muito pequenas, com as quais a gente pode trocar muito mais, que eu não delegue tanto para os outros o que eu poderia fazer. Eu tô assim, tentando ver como outras formas de se trabalhar traduz em termos de imagem. Não acredito que essa relação seja necessariamente tão rígida nos afazeres de cada função de uma equipe de cinema. Agora, desde que eu comecei a só fotografar, eu fiz alguns filmes grandes e é inevitável que rolem algumas coisas que eu discorde. Tem algumas pessoas com quem eu trabalho há muito tempo, assistentes de elétrica e maquinária com quem tenho uma relação de carinho muito grande, mas acabo trocando pouco nessas situações, porque eu sempre estava num lugar no set que eles quase nunca estavam. Em um filme grande, com muitas pessoas, a gente não pegava a mesma van, não almoçava na mesma mesa, porque às vezes eu tinha que almoçar com a diretoria, porque eu tinha que conversar sobre o que ia acontecer. A gente se encontrou muito em festa e era com eles que eu mais me divertia, mas a verdade é que, na prática do trabalho, tinha um abismo entre nós, mesmo com o Luiz Paulo Xein que é um dos meus melhores amigos, se a gente está fazendo um filme grande juntos, ele é o cara da pesada e eu sou a princesa fotógrafa, sabe? Então é muito complexo, tem também, os assistentes de câmera, que é outra história. Eu fico pensando sobre isso, dos meus assistentes de câmera, a grande maioria, ter carrão e os meus assistentes de elétrica e maquinária não, e não vão ter. Na estrutura de um set de cinema tá sendo reproduzida uma coisa que eu discordo da sociedade e me incomoda muito, isso é até uma discussão que eu tenho com o Xein, até que ponto a gente vai conseguir fazer um cinema anticapitalista, se o cinema é isso hoje? Porque, no mínimo, eu preciso de uma câmera que tá sendo construída numa fábrica, e aí depois eu preciso do computador e depois da sala de cinema ou da internet, então é um paradoxo. E, ao mesmo tempo, eu fico fazendo esses filmes pequenos que eu trabalho com cada vez menos gente, mas aí os assistentes de elétrica e maquinária não têm trabalho.
E como é pra você o momento de escolher entrar em um projeto?
Eu tenho trabalhado muito pouco com cinema mesmo, fiz os dois últimos longas em 2014. Tenho feito muita televisão, apesar de ser uma coisa que eu não tenha um tesão absoluto, principalmente pelo ritmo e formato a toque de caixa, que acaba tendo muito pouco espaço para o acaso. Mas eu estou lá com amigos, aprovando nossos projetos no fundo setorial, TVs públicas e acaba sendo legal, colocando a gente de encontro com pessoas interessantes. E dá minimamente pra gente exercitar o fazer audiovisual porque, por mais que tenha essa coisa estrita do formato, no final a gente comunica alguma coisa que é massa e que a gente acredita. Enfim, eu tenho feito muita coisa com amigos e tenho, sim, feito uma escolha ética de projeto, já recusei projetos com os quais eu não quero me ver envolvida. Não quero me ver envolvida com a reprodução de um discurso que eu não concordo. Mesmo que seja um sacrifício pra minha vida pessoal, mas eu tô achando é massa, para falar a verdade, porque eu acho que, quanto mais a gente radicaliza, mais a gente chega onde quer estar de fato. Então, se não der para pagar minhas contas com cinema, vou parar de pagar minhas contas e foda-se. Acho que é isso, preciso ter confiança nas pessoas com quem estou trabalhando. Tem que ter esse encontro – emocional, politicamente -, se não tiver, não vai dar certo.
O fato de você ser atriz e também ter realizado seus próprios filmes influencia na sua forma de trabalhar com cinema?
Sim, é quase uma campanha contra especialização. Fui muito ferrenha na especialização durante muito tempo, porque eu queria aprender e, uma vez que aprendi, vi que não ia muito para além disso se eu continuasse só desempenhando aquela função. No fundo, é uma busca por felicidade mesmo, por satisfação, por estar no mundo achando que faz algum sentido estar ali e, se eu for só fotógrafa, não vai fazer sentido, porque nem todo filme vai ser um tesão de fazer, nem todo filme eu vou achar que eu estou fazendo diferença no mundo. Então, eu acho que ter sido atriz foi muito bom porque eu precisava dar vazão para uma coisa que eu tinha há muito tempo, desde que eu era criança, continuei e vou continuar atuando. Eu sou uma pessoa que está no mundo, que está vivendo e lidando com ele, às vezes lido como atriz, às vezes como fotógrafa, às vezes como cozinheira, às vezes como ativista, às vezes como filha, às vezes como mãe. E tem os filmes que eu quero muito dirigir e que eu já dirigi e quero fazer outros, porque eu preciso fazer. Teve uma coisa que eu experimentei quando eu fiz O Sol Nos Meus Olhos (2013), que foi dirigir ator e que foi muito da hora porque eu tenho uma relação com o Rômulo Braga hoje que é, de novo, de confiança, a gente confia muito um no outro, é uma pessoa que está doando o corpo, as emoções pra câmera e isso é uma coisa que eu entendo porque eu já fiz.
Como você costuma trabalhar com a luz?
Meu impulso natural é ver como a luz é naturalmente naquele espaço e tentar lidar com aquilo. Eu parto muito do que acontece naturalmente no lugar, mesmo que seja um espaço artificial, eu penso de onde naturalmente viriam as fontes de luz, começo da realidade para depois chegar em algum lugar. Nos filmes que fiz com a Juliana Rojas é bem isso que acontece, a gente parte da realidade mas a gente subverte. No filme realizado em 2015, A Vez de Matar a Vez de Morrer, do Giovani Barros, tinha uma coisa que era uma presença muito forte da luz natural, a gente estava no Mato Grosso do Sul, num lugar aberto, não tinha como ignorar, manobrar, querer outra coisa, você tem que lidar com a realidade, lidar com o sol e o sol vinha e queimava, eu incorporei. Mas há pouco tempo no Bruma (2016), o filme do Matheus Parizi, tinha um clima nublado e chuvoso e a gente estava filmando em uma semana com muito sol, fizemos um malabarismo pra chegar no nublado e chuvoso e foi todo um esforço de plano de filmagem, de horários, escolha de locação para conseguir fazer isso. Por mais que seja o oposto da minha maneira de trabalhar, eu acho que foi muito bom para o filme e deu muito certo, é antinatural e tal, mas cinema é isso, às vezes precisa chegar em um lugar não importa de onde a gente parta.
Como costuma ser seu planejamento antes de ir pro set de filmagem?
Eu fazia muito mapa de luz, depois que comecei a trabalhar com o Xein, acabei parando de fazer, eu falo pra ele o que eu estou pensando, ele me fala o que ele acha e a gente vai fazendo junto, ele entende muito de fontes, afina lindamente, é meu braço direito, é essa pessoa que está me ajudando o tempo todo a pensar. Mas depende muito do filme também, conhecer bem a locação é uma coisa importante. No filme que fiz agora, o Bruma, foi bem isso, eu visitei a locação com o assistente de direção, o Lucas Barão, algumas vezes por questão de horário, para ter certeza absoluta que não iria fazer sol naquele lugar àquela hora. E eu sou muito ligada em decupagem também, é uma coisa que eu gosto muito de construir junto com o diretor. Mas tem filmes, como o do Bruno Risas, que é muito de descobrir as coisas na hora, a gente está lá numa equipe de três pessoas dentro da casa dos pais dele e a gente tem um roteiro que às vezes é ignorado; é ficção mas a gente também tem que estar atento às coisas quando elas estão acontecendo, então a gente tem um trabalho de decupagem que é na hora. Algumas mise-en-scènes a gente já tem na cabeça, aí eu já penso se vamos precisar de um travelling ou um zoom, penso como eu vou fazer o foco. Escolha de câmera é importante para pensar onde o filme quer chegar e o que eu preciso tecnicamente pra chegar nele. Inevitavelmente, a primeira coisa que norteia escolha de equipamento é o orçamento do filme. A F5 é uma câmera que uso muito, dá uma imagem linda, gosto de trabalhar com ela ergonomicamente. Acho as funções muito fáceis e gosto da imagem que ela produz, além de ser relativamente barata, para um filme que tem algum orçamento de câmera, ela é possível. Eu não tenho nenhuma pira de equipamento, a gente faz com o que tem de grana. No filme do Bruno, a gente filmou com todo tipo de câmera, HVX, F5, uma handycam da Sony, 5D, F3, com celular, e agora ele está montando enquanto filma e a gente já tem uns 23 minutos do filme e as câmeras misturadas cortam lindamente. A escolha do equipamento depende muito do filme, das necessidades, eu me preocupo muito com isso, ergonomia, peso, a imagem, o que você vai ter de luz, em que condições você vai filmar, qual o tamanho da sua equipe, qual a necessidade do filme de ser rápido ou não. Tem muita coisa que determina a escolha do equipamento e que, às vezes, não é a qualidade da imagem, não é um raw 4k que é o mais importante; tem alguns filmes que é, mas tem alguns que não.
Você fez alguns curtas em película e seu primeiro longa foi digital, como é trabalhar com esses dois suportes?
Eu sou uma geração bem da passagem, na verdade, eu filmei em película mas o primeiro filme que eu fiz não foi em película. Eu fiz muito filme na UFF com JVC. O primeiro filme que eu fotografei, junto com a Natalia Sahlit, o filme do Fernando Secco, Os Eremitas, fizemos com uma DVCAM e eu lembro que a gente fuçou naquele menu numas paradas que depois, quando eu fui pra França, eu fiquei sabendo que só engenheiro mexia naquilo e que a gente tinha zoado a câmera porque não sabíamos voltar. A gente mexeu em tudo e chegou na imagem que a gente queria na câmera. Isso foi em 2004 e talvez essa tenha sido a coisa que eu melhor aprendi, de ter vivido a transição, a gente fotografa desde o início, todas as escolhas são determinantes. Tem muita coisa que você faz na pós mas a fotografia não pode ser só determinada na pós, e eu acho que tem muito fotógrafo que faz isso hoje em dia, captura a imagem mais flat possível para poder decidir depois, eu acho que é um método, mas não é o meu. Eu penso assim por ter trabalhado com toda a sorte de câmeras digitais desde o início, então a gente fuçava em todos os botões. E, quando filmei em película, já sabia, porque fotografava still, que cada emulsão tinha suas caraterísticas e que eram determinantes e eu sabia que eu tinha que fazer uma escolha pela emulsão. Eu filmei em película há dois meses, aquelas latas ali estão para ser reveladas, foi o filme do Sergio Silva, chama 35 em 35, ele fez 35 anos, a gente filmou em 35mm em 2:35, conseguimos tudo de graça, película velha, câmera emprestada e a gente filmou as festas de aniversário dele. Teve o filme do Giovani Barros também, A Hora Azul (2014), que a gente fez em 16mm e foi muito bom. O Sergio vai fazer uma série lá na Dezenove Som e Imagens, ele e João Marcos de Almeida, e ele quer fazer em 35mm de novo, é uma opção, e eu nem acho que seja um fetiche, é uma opção. Eu fui ver ontem o filme do Hou Hsiao-Hsien, A Assassina, é deslumbrante, é muito foda em vários sentidos, ele muda de janela, muda de formato de captação, tem dois planos em 35mm que são um escândalo de lindos e que são scope e depois ele volta pra janela mais quadrada que estava, que é em digital.
Como é pra você o processo de pós-produção? Já pensa na correção de cor antes de filmar?
Depende do filme. No Califórnia (2015), por exemplo, o Alexandre Cristófaro, colorista, e eu fizemos toda uma pesquisa, já tinha decidido que eu queria filmar com a F5 mas eu não sabia se eu filmava em raw ou em log. Não sabia o que fazer, queria filmar em log porque eu não queria ter o gravador externo, o filme ia ser todo câmera na mão, mas eu não sabia se isso era possível, se ia ficar bom, então fizemos todos os testes possíveis. A gente fez um lut e depois passou para DCP, vimos projetado e foi libertador, porque foi aí que eu falei “É isso! A gente vai filmar em s-log2“. A gente descobriu coisas da câmera que não tinha em lugar nenhum e eu monitorei em log mas todos os outros monitores tinham já esse lut. Na pós, a gente trabalhou a partir da referência desse lut, mas não foi lá e aplicou, teve um novo processo que foi massa. Mas tem filmes que não precisam disso, eu não acho que necessariamente você precisa ter um lut pra cada filme, o Califórnia era uma coisa muito específica. Uma vez um colorista falou pra mim: “você deu o lut na câmera?” Não é que eu dei o lut na câmera, é que eu fotografei, eu determinei qual era o contraste que eu queria e a cor e agora a gente vai só balancear, porque é só isso que eu quero mesmo, eu não preciso de outra coisa. A primeira vez que eu manipulei mais uma imagem foi no O Duplo (2012), a gente não trabalhou com lut mas a gente fez testes, foi a primeira vez que eu tive uma relação assim com um colorista, que era o Rogério Moraes, de ficar lá mexendo e vendo o que poderia ficar bom, a gente printou os testes em 35, foi muito da hora, e assistiu, e já filmou pensando como ia ficar. Mas enfim, é isso, não é todo filme que precisa disso, tem filme que a gente filma com a 5D e é isso. Outro filme que eu fiz que foi muito legal foi Os Barcos (2012) do Caetano Gotardo e da Thais de Almeida Prado, a gente filmou com a 5D, não é que eu quisesse que ele superexposto, mas eu queria que a sensação de calor fosse pelo excesso de brilho da imagem e aí foi muito boa a conversa com Junior X para explicar pra ele o que eu queria e ele me falou onde dava pra chegar e tal, no final a gente estava muito empolgado, foi muito bom. Mas é isso, não é uma execução só, não pode ser uma lista de coisas para serem feitas e pronto, a pré-produção é um processo de descoberta, outro processo de descoberta na filmagem, outro processo de descoberta na pós-produção.
E como é para você desempenhar essa função há tanto tempo ocupada predominantemente por homens?
É muito louco porque, por muito tempo, o meu feminismo estava em fingir que eu não sou mulher para ocupar esses lugares, por exemplo, ignorando essa questão de gênero e aí agora já é completamente o contrário, afinal, eu sou uma mulher e isso faz diferença, não vou fingir que não tem diferença na execução desse trabalho entre homens e mulheres. Mas, no fim das contas, eu vivo muito em uma bolha, uma bolha feminista friendly, porque eu deixei de fazer filmes que eu não me sentia bem, porque até em muitos filmes que eu era bem tratada, era por conta disso que eu te falei, eu era a princesa fotógrafa, tenho a sensação de que por muitas vezes eu não senti preconceito por ser mulher porque eu to num lugar de poder – quando eu era assistente, não era assim. E, nesse sentido, eu vivo um pouco numa bolha porque eu tenho uma relação com as pessoas com quem eu trabalho que é de parceria mesmo, eu não vou trabalhar com um chefe eletricista ou um chefe de maquinária machista. Mas até os abusos que eu sofri sempre foram coisas que eu ignorei, então eu ainda sofro um pouco disso no meu discurso de mulher no cinema, eu sofro disso de não ter pautado e de não pautar muito as ocasiões onde aconteceu assédio ou preconceito, acho isso um erro que eu estou tentando mudar, só que estou tentando mudar exatamente num momento em que vivo nessa bolha, que todo mundo com quem eu me relaciono tem consciência política, partilha minimamente uma visão de mundo. Acho que muito do motivo pelo qual eu deixei de ser assistente tem a ver com isso também, e aí virei a princesa fotógrafa, to aqui nesse posto, intelectual e tal, mas eu fico pensando que, se eu fosse negra, ou indígena, eu não estaria onde eu estou. A verdade é que eu sofri pouco, porque eu tenho muitos privilégios. Então, falando assim como experiência própria, até agora foi, de certa forma, confortável. Eu sei que meu salário já foi menor pelo fato de eu ser mulher, mas eu ainda fui chamada pra fazer o filme, entende? Eu ainda fui cotada, tem gente que não é. Cinema é muito machista, mas tenho que reconhecer meus privilégios. E tem as escolhas que fiz, também, não querer me tornar uma fotógrafa do mercado, não tenho interesse nenhum em estar inserida no cinema comercial, de forma alguma, então por enquanto ta sussa, eu sofro mais na rua, às vezes, do que num set hoje em dia.