Minha mãe olha pra tela do computador e pergunta “Quem são esses?”
– Isabella e Felipe.
– Eles tão…
– Colocando roupa no varal.
– Mas porque tão filmando isso?
– Não sei.
– Mas isso é…
– Um vlog, eles filmam a vida deles todos os dias.
– Ah sim…
Ela me olha com a mesma cara que fez quando me ouviu falar “catioro”, algo entre o estranhamento e a pena. Eu começo a me justificar. Digo que não sei porque eles fazem isso; que é um tédio, nada demais acontece e quando acontece não é muito diferente do que aconteceu na semana passada. Acho importante deixar claro que também não vejo sentido nisso, que posso até assistir, mas não aprovo, não é algo que me satisfaz. Omito que, na verdade, assisto os vlogs do canal Fotografando à Mesa diariamente há mais de seis meses. Tanto tempo e frequência denunciam que, sim, tiro algum prazer disso.
Não sei exatamente como começou. Deve ter sido em um domingo ou feriado, um desses dias em que você não tem disposição para fazer algo novo e, ao mesmo tempo, está entediada. Cada vez mais a Netflix tem sido insuficiente para mim, porque a ideia de assistir um filme ou começar uma nova série parecem demandar muito esforço. Eu não quero o trabalho de entrar em uma história; a suspensão de conhecer novos personagens exige uma concentração que, na maior parte dos dias, não estou disposta. Eu quero alguém que fale comigo como o Faustão fala com a minha mãe – uma voz que fica lá, me entretendo, sem pedir muito em troca. Mas é claro que, para alguém falar de fato comigo, essa pessoa não pode ser o Faustão. Mesma função social, outras escolhas imaginárias.
Então os vloggers, os youtubers, esse espaço virtual onde se encontra gente falando o tempo inteiro. Principalmente, se encontra gente que pode falar comigo; que usa os mesmo termos (“catioro”, inclusive), roupas, músicas, aflições, desejos, enfim, que compartilha o mesmo repertório imaginário que eu.
O YouTube é um lugar possível: qualquer um pode publicar um vídeo na plataforma. É, assim, um lugar polifônico, construído por muitas vozes e formas de uso diferentes. No entanto, não exatamente democrático, já que as redes sociais operam com suas próprias estruturas e demandas com um intuito de lucro. Todos podem fazer uso do YouTube, nem todos serão vistos e uma minoria irá de fato participar desse lucro. Em outras palavras, tem muita gente produzindo conteúdo, fazendo uso e, ao mesmo tempo, sendo usado por essa plataforma. Dentro disso se cria algumas linhas de sucesso. Entre os vídeos mais acessados não há muita diversidade, tanto em conteúdo quanto nos formatos: 50 Formas de Usar Óleo de Coco, Como Eu Faço Meu Bullet Journal, #SpaDay, Receitinha de Crepioca Fitness, Como Conquistar o Crush, etc. O YouTube é um lugar de acordo com o mundo em que vivemos e seu uso é mais utilitário do que experimental. Exatamente por isso, os canais que apresentam um conteúdo mais prático são mais acessados. Hoje em dia, se eu não sei fazer algo, procuro um tutorial no YouTube.
Evidentemente, há brechas e os dias como os domingos, em que se navega sem saber aonde se quer chegar. É aí que acontecem os encontros. No meio de tanta informação, eu poderia deixar passar os vídeos do Fotografando à Mesa mas algo ali me capturou. As imagens do Fotografando à Mesa têm uma certa textura. Para além de um silêncio preenchido e das funções utilitárias, há um cuidado estético e uma preocupação em construir uma narrativa através das imagens. Isabella e Felipe vão além da democrática proposta do YouTube na qual basta gravar e publicar um vídeo, porque eles realizam um trabalho de edição, fazem uso das cores, do enquadramento e dos cortes para se expressarem.
Na verdade, a origem do canal já se deu a partir desse cuidado estético. Antes dele existir, Isabella estudava gastronomia e tinha um blog de culinária, porém, nas palavras de Felipe, que estudou fotografia e cinema: “As fotos eram muito ruins”. Assim surgiu o Fotografando à Mesa, um canal de culinária que unia as paixões e habilidades do casal apresentando receitas gostosas e visualmente agradáveis. O canal se transformou em um daily vlog (ou vlog diário) e deixou de exibir receitas em meados de 2016 quando, depois de participarem do VEDA – Vlog Every Day April, em português algo como Vlog em todos os dias em abril -, Isabella e Felipe resolveram experimentar novas formas de criar e compartilhar conteúdo no YouTube.
Os vídeos de receitas do Fotografando à Mesa tinham uma espécie de assinatura justamente pelo apuro estético, o modo como cuidavam das imagens e dos sons criando uma narrativa particular. Isso é interessante, levando em conta a multidão de propostas similares no YouTube. Todo mundo pode gravar uma receita e publicar, mas criar uma identidade para seu conteúdo é algo que demanda uma outra forma de trabalho. O canal não perdeu sua assinatura quando mudou o foco; Isabella e Felipe deixaram de gravar receitas para narrar suas rotinas em vídeos diários, mas as cores, os enquadramentos, as músicas, entre outros elementos característicos do Fotografando à Mesa permaneceram.
Eu acho os vídeos desse canal bonitos, com um tipo de beleza planejada e aconchegante como alguns feeds do Instagram. É aquela sensação de estar não em casa, mas na casa que se gostaria de ter, como o que se encontra em um painel Casa dos Sonhos no Pinterest – e por aí já se vê que minha compreensão de beleza foi formada a partir de um lugar específico, aquilo que se pode chamar de geração, mas que é só uma parte mais jovem e privilegiada economicamente da nossa sociedade. As imagens do Fotografando à Mesa são eficazes em produzir esse efeito, formam um conjunto de objetos e sensações com os quais podemos identificar nossos desejos. Então, é fácil compreender o que me atrai aos vlogs: é um entretenimento próximo à minha realidade e, assim como o Faustão, eles se comprometem com um horário; todos os dias às 21:30 há um vlog novo, basta dar play.
Contudo, traçar um paralelo entre daily vlogs ou videoblogs (como o Fotografando à Mesa) e o Faustão reduz imensamente a gama de questões que essa nova forma de fazer entretenimento proporciona. O Fotografando à Mesa não pode ser compreendido como um entretenimento qualquer. Imagine um domingo sua mãe fazendo a unha usando o barulho da TV apenas para evitar o silêncio, tudo segue como previsto; bailarinas ocupando o pano de fundo, uma banda nacional preparada para executar o playback, caravanas mais ou menos empolgadas e então Fausto Silva trajando uma camiseta de gosto duvidoso para e diz:
– Hoje eu acordei e fiquei pensando que isso aqui anda seguindo uma rotina, um padrão, estou me acomodando, sabe? Fico realmente aflito porque sinto que poderia estar produzindo um conteúdo melhor pra vocês. No último programa nem eu achei graça daquelas vídeo-cacetadas. É que isso aqui é um desafio. Mas a gente precisa se esforçar pra estar sempre inovando. É bom se questionar porque isso que faz a gente se manter em movimento, né? Isso é só pra dizer que eu tô atento aos comentários, percebo esse marasmo, mas a gente vai trabalhar pra trazer coisas novas e produzir um conteúdo melhor pra vocês, viu?
Em toda nossa vida de TV aberta nunca existiu um questionamento explícito sobre a programação que cada canal apresenta. Imagino também que minha mãe não se questione muito por que assiste o Faustão entre outros programas que, em geral, mostram uma realidade bastante incompatível com a sua. No entanto, eu questiono os motivos que me fazem assistir ao Fotografando à Mesa assim como Isabella e Felipe frequentemente questionam o conteúdo que apresentam e as motivações que envolvem a produção de um daily vlog. Isso acontece não porque o Faustão ou qualquer outro programa da TV aberta façam mais sentido do que a programação de um canal do YouTube, mas porque o último se trata de algo novo que está acontecendo e, portanto, que ainda não faz parte do nosso repertório de hábitos.
Além disso, há uma diferença capital entre Faustão e Fotografando à Mesa: o dinheiro e o tempo. Tanto Fausto quanto Isabella e Felipe encaram a programação que exibem como um trabalho, contudo, a remuneração que o primeiro recebe é infinitamente superior ao que os últimos arrecadam. Isabella e Felipe realizam um trabalho diário para pensar, executar, gravar e editar os vídeos e usam suas próprias vidas como o material desse conteúdo; já Fausto exerce semanalmente um personagem Faustão e, ao fim de cada domingo, pode seguir sua vida em privacidade.
O tempo que os vloggers colocam em seus ofícios é muito mais do que normalmente se espera de um trabalho. Primeiro, porque o que oferecem como produto são seus estilos de vida. Segundo, porque esse produto não é uma inovação no mercado, portanto, para ser bem sucedido há a necessidade de transformar sua vida em algo original, interessante e desejável – adjetivos que obviamente se baseiam em parâmetros externos. Em alguns episódios de Fotografando à Mesa é notável que há um impasse envolvendo as expectativas de Isabella e Felipe: eles querem produzir um conteúdo genuíno, ou seja, desejam mostrar quem realmente são e construir uma narrativa a partir de suas experiências; mas também, por motivos óbvios, desejam crescer no YouTube e, para isso, dependem de visualizações, inscrições e likes. O que se desenha aí é uma aflição circular na qual, em meio a uma incessante produção de conteúdo, é preciso estar sempre melhorando ou atualizando quem você é, transformando sua vida em algo inovador, atrativo e interessante.
Isabella e Felipe não desejam se render totalmente às expectativas alheias só para alcançar o sucesso na internet – o que é uma raridade, diga-se de passagem –, o que desejam é conquistar esse reconhecimento junto a uma satisfação pessoal. No entanto, isso inevitavelmente os leva a uma constante necessidade de repensar suas vidas – o que, em muito vídeos, eles comentam como algo positivo, que inspira mudanças e movimento – ao mesmo tempo em que produzem incansavelmente um conteúdo diário usando essa mesma vida como material.
Em resumo, ao contrário de Isabella e Felipe, o trabalho de Fausto Silva não demanda que ele coloque em questão sua própria vida. Fazer um daily vlog é um trabalho massivo, demanda um tempo diário quase absoluto e não dá qualquer garantia de recompensas. Assim como os próprios apresentadores de Fotografando à Mesa, eu me questiono sobre o valor e sentido disso, mais ainda sobre os efeitos que provocamos em nossas próprias vidas quando as transformamos em um produto. Alguns podem rotular com facilidade os daily vlogs: espetacularização do eu, narcisismo, geração viciada em selfies, millennials, etc. Enxergar por esse viés é uma escolha possível, mas acho que olhar com mais atenção e tentar, de fato, entender o que move os daily vlogs é uma opção mais instigante. É fácil demais pensar que Isabella e Felipe fazem vlogs porque são parte de uma geração viciada em validação alheia, porque com o uso das mídias sociais é possível garantir esse tipo de satisfação de um modo muito mais rápido, seguro e eficaz.
Quem conseguiria manter por muito tempo o ofício de criar diariamente uma narrativa usando como material as imagens de sua própria vida? Eu me pergunto sobre isso e, às vezes, no transporte público depois de um dia cansativo, me pego pensando quais partes do meu dia entrariam no meu daily vlog. Assistir aos vlogs faz com que eu me veja cercada de novas perguntas. É por isso que acredito que canais como o Fotografando à Mesa expõem de um modo orgânico – porque isso não é o propósito do conteúdo, é algo que acontece para além de qualquer intenção – muitas das questões contemporâneas ou melhor, de algumas pessoas que vivem esse tempo contemporâneo. O valor artístico, político e ético desses registros pessoais espalhados pelo YouTube ainda é questionável. Porém, é justamente essa pluralidade de questões que parece preceder qualquer gesto novo. E isso é algo interessante de testemunhar e, de alguma forma, fazer parte.
Post scriptum: Durante o período em que eu editava este texto, minha mãe foi fisgada pela narrativa do Fotografando à Mesa e passou a acompanhar os vlogs junto comigo. Até o atual momento, sua personagem preferida é a gata Duvelina.
Por Taís Bravo
Fiquei com invejinha branca desse ensaio reflexivo (catioro?). Tá digno dos melhores ensaios que já sobre alguma coisa. E em língua portuguesa ainda… (não é bem um gênero muito usado para expressar por aqui)
Que texto sensacional! Adorei!
Bate aqui viciada em FAM, se o Orkut ainda existisse eu criaria a nossa comunidade Viciados em FAM…Como não se viciar, é como se, muitas vezes, víssemos nossos pensamentos e até nosso dia a dia, de alguma forma, representados ali… Tão realista que é impossível não sentir conexões…
Tchau,e a té amanhã 😉