O imo, a imobilidade: repensando um cinema “feminino” a partir do filme de Bruna Schelb

Será que qualquer simbolismo nos serve politicamente? Será mesmo potente e questionador falar a partir de metáforas que pressupõem uma experiência de feminino universal? Mais que tudo, foram essas as questões que nos animaram a partir de Imo, longa de estreia da diretora Bruna Schelb, a despeito do interessante risco em se apostar na força expressiva dos símbolos como modo de narrar (alinhando-se então à longa tradição de um cinema experimental e menos narrativo).  

Onde se encontra, qual a textura, cor e cheiro do núcleo duro do que significa ser mulher? Eis uma pergunta central que guia as três encenações presentes nesse filme. A busca por essa essência do feminino, explícita no próprio título, é aqui performada na chave de um surrealismo que se vale de símbolos clássicos de uma suposta leitura feminina das imagens. Símbolos de água e de outros elementos da natureza já gastos¹ para falar de uma imaginada essência e experiência geral do feminino são colocados em ação para abordar as dimensões da opressão e da objetificação das mulheres.

Os capítulos operam a partir de uma iconografia da pintura ocidental, entre o Renascimento e o Barroco, e é possível recordar aqui de como John Berger² usava dessa mesma iconografia para frisar de que forma a História da Arte legitimou a mulher enquanto objeto do olhar masculino. Na disposição do quadro, em alguns jogos de luz e, principalmente, na relação que as três mulheres em cena estabelecem com os espaços e objetos que as cercam, há uma tentativa de revisão e atualização dessas dinâmicas de autorização/desautorização do olhar. O segundo bloco do filme chega a tratar isso de forma mais direta, quando a personagem em cena arranca seus próprios olhos. Aliás, ainda que a diretora cite, em debates e depoimentos sobre seu filme, o cinema de Rogério Sganzerla e de Chantal Akerman como influências diretas, é na cinematografia de Luis Buñuel que se encontram as referências mais evidentes dispostas sobre os três momentos do longa: tanto a retirada dos olhos no segundo movimento, quanto a mão decepada e guardada dentro da caixa no primeiro capítulo e a mesa das pessoas da sala de jantar, no terceiro, funcionam no pêndulo entre Um cão andaluz (1929) e O discreto charme da burguesia (1972).

É significativo que o filme esteja mais aliado ao surrealismo de Buñuel do que ao “cinema fora da lei” de Sganzerla ou ao hiperrealismo de Akerman. Ainda que por vias bastante diversas – o delírio e o excesso para um, o rigor estrutural e a economia formal para a outra – Sganzerla e Akerman ancoram seus experimentalismos no diálogo com a matriz sócio-histórica na qual suas respectivas criações se inserem. Buñuel também o faz à sua maneira, evidentemente, mas se em Imo lemos traços que o aproximam de sua obra, não é pela habilidade em criar correspondência entre o fantástico e o real, entre o sonho e a vigília, e sim em função de associações evidentes com algumas situações já encenadas pelo diretor, como as mencionadas acima. Essas associações, contudo, aparecem quase entre aspas, destacadas de um discurso crítico e original. O que parece faltar em Imo é justamente uma dimensão crítica que poderia vir a complexificar a ideia de feminino que se tenta construir, algo que pudesse perturbar a própria ordem interna do filme de modo a sublinhar quão difícil é a tarefa de narrar um “ser mulher”. O que temos, ao revés, é um exercício de reiteração, bloco após bloco, de simbologias um tanto óbvias, e uma coleção de situações que parecem girar em falso ao redor do mesmo equívoco: a já mencionada intenção essencialista que, além de anacrônica e totalizante, é ingênua considerando o contexto no qual o filme se insere, esse momento em que, finalmente, questões interseccionais tomam fôlego no debate feminista que ocorre no Brasil.

É muito importante ver esse trabalho entrar em conversa direta com outros filmes, sejam eles recentes ou mesmo os diretamente herdeiros da escola experimental e do contracinema feminista dos anos 1970, tais como Barbara Hammer, Laura Mulvey, Yvonne Rainer e Marguerite Duras. Há nesse contato possibilidades de tentarmos, entre outras coisas, identificar o quão custosa pode ser a cruzada por esse Santo Graal que contém a essência do feminino. São muitos os dilemas do essencialismo e nada recentes: pelo menos desde que a abolicionista e mulher um dia escravizada Sojourner Truth subiu ao palco do debate para indagar “Ain’t I a woman?”, em 1851, somos obrigadas a compreender o quanto a ideia de sujeito feminino universal é excludente e privilegia o lugar da mulher branca, cisgênera, de classe média e heterossexual, deixando de fora toda uma variedade de experiências femininas que não apenas não formam um conjunto homogêneo como se contradizem internamente.

O sujeito do feminismo, como destaca Teresa de Lauretis³, exige pensar o que está dentro e fora da representação de gênero, refletindo sobre o que essa representação engloba e, sobretudo, sobre o que ela exclui. Como transpor, para um filme, essa consciência crítica do lugar do feminino atravessado pelo que resta fora dele ou de sua representação?  Uma das formas seria por criar diálogo com o fora-de-campo, espaço não visível que tensiona o que resta visível na imagem. É o que Akerman soube fazer com maestria: criar um quadro rigorosamente composto e bem delimitado, mas aberto ao fluxo do real que o atravessa e perturba. E é o que parece faltar no filme de Schelb, construído de modo a isolar seus elementos de qualquer perturbação ou contradição, por força de uma coerência interna que parece trabalhar apenas em função da ingrata tarefa de delinear o “imo” feminino.

O que queremos dizer é que isoladas em si mesmas – e isoladas enquanto projeto com demarcada unidade estética que dá liga aos seus três capítulos – as estratégias de engajamento que Imo faz com o debate feminista e, particularmente, com a possibilidade de uma imagem feminista no cinema, são anacrônicas. Ainda que elaborado em um contexto histórico de debates interseccionais, por uma jovem diretora que, não à toa, traz como sua primeira personagem uma mulher trans, o filme recai em vários momentos numa auratização da opressão feminina e do lugar aparentemente unívoco que essa opressão cria na elaboração da categoria mulher. Já no primeiro capítulo, a personagem se vê atrapalhada na sua tarefa cotidiana de cortar maçãs por várias mãos que nascem do seu próprio corpo, entre elas, uma mão masculina. No crescendum da coreografia dos gestos, os empecilhos vão ficando insuportáveis até que a personagem decepa essa mão masculina, finalizando assim o capítulo. O simbolismo óbvio acaba por reduzir a complexidade das nossas opressões, que não são, infelizmente, tão facilmente “decepáveis” a um só golpe. Não queremos tomar a obviedade como algo em si condenável. Há sem dúvida projetos estéticos onde a obviedade é estratégica – como no melodrama, por exemplo, onde a simbolização exacerbada sementa o engajamento afetivo e passional proposto pela obra. Mas Imo, ao convocar na sua materialidade um diálogo com o universo do cinema experimental, não se instala nesse tipo de projeto onde a obviedade é um valor.

Os espaços por onde o longa circula são o interior de uma casa – as fronteiras domiciliares que cabem à mulher – e o verde do quintal/floresta onde essa casa está localizada – a ideia de mãe natureza e da associação entre o feminino e o telúrico que se sobrepõem já no plano inicial e retornam com força no segundo bloco do filme. Os objetos igualmente reiteram uma simbologia que não abre muitas brechas para dúvidas: as já citadas maçãs, o pássaro na gaiola, o espelho, a carne da mulher posta sobre a mesa do jantar, a fruta-vulva, a manequim. Tudo está ali para sublinhar que se trata de um filme com os pés bem fincados em uma esfera simbólica bastante compactuada com o campo psicanalítico do que significa “ser” mulher ou homem, sem contudo elaborar sobre o que nos leva a interiorizar essas naturalizações, ou mesmo como estas vêm atravessadas de redes complexas que não cabem nas polaridades do feminino versus o masculino; como o filme parece reiterar com sua representação caricatural das masculinidades que aparecem em suas cenas. Nesse sentido, há também, por tabela, uma construção cristalizadora não apenas da mulher, mas do homem, posto que a masculinidade em cena é apenas aquela que atende ao discurso binário opressor/oprimida.

É talvez movida por essa pulsão do imediato e de um debate necessário – refletida também nas angústias que o próprio festival de Tiradentes apresentou em sua edição de 2017, quando o longa Subybaya, de Léo Pyrata, foi justamente questionado por suas representações do feminino e do feminismo – que Schelb articula uma resposta surrealista de códigos facilmente apreensíveis. E nesse movimento de performar uma imaginada substância da condição feminina, ela termina se valendo de cristalizações que parecem, assim como suas três personagens, enclausuradas num espaço de não-reação e silenciamento. A pontuar que o filme é todo construído a partir da ausência de palavras, e o que poderia ser um artifício extremamente sofisticado (e ousado) para lidar com o tema em um longa-metragem – como se insurgir usando as armas que o sistema aponta contra você? – termina apenas reiterando uma imobilidade daquelas mulheres ilhadas em uma casa onde nem elas mesmas se encontram.

Seja cortando/decepando maçãs enquanto mãos estranhas tentam impedir suas ações no primeiro bloco, seja se expondo ao espelho, ou se colocando nua sobre uma mesa onde homens gargalham os privilégios de serem homens diante do “banquete” a eles apresentado, o movimento de reação dessas mulheres é sempre muito contido. Mesmo no último bloco, talvez o mais didático de todos, quando se esboça um movimento catártico de resposta da mulher à sua condição socialmente construída, o gesto parece mais tímido do que esperávamos que fosse: no momento em que se percebe objeto de cena, a mulher nua sobre a mesa se levanta e passa a encher as taças dos homens com o sangue que sai de um corte em sua barriga, bebida que logo depois eles desfrutam, desavisados do líquido que atravessa seus dentes. Perder a oportunidade de colocar nesses copos o sangue menstrual parece ser menos uma tentativa de fugir de mais um símbolo evidente (se já havia tantos, por que não mais um?), e mais um direcionamento por uma imagem ponderada e não ofensiva. Como se o próprio filme não conseguisse sair desse lugar de uma coreografada e, de certa forma, respeitosa imobilidade que define e contém suas personagens.

Imo surge como sintoma de algumas falas que atravessam o discurso feminista sobre e no cinema brasileiro contemporaneamente. É importante enquanto exercício de realização de uma diretora em princípio de carreira e certamente bem intencionada, disposta a assumir, inclusive, o risco da incompreensão ao optar por um discurso hermético, cifrado, pontuado pelo fantástico. Mas é preciso amadurecer o debate, que parece, nesse momento, buscar algum ponto de estabilização, como se fosse mesmo possível definir um “cinema feminino” calcado em certos elementos expressivos abundantes em Imo, como o silêncio, a imobilidade, o hermetismo, o enigma.

Em Tiradentes, as autoras desse texto formavam uma maioria no júri da crítica, acontecimento se não único, raro na história do festival. Como consequência, sentimos no ar certa expectativa pela premiação de um filme explicitamente pautado pela questão de gênero porque, oras, não é isso que interessa às mulheres, sobretudo, às feministas? Dentro ou fora do filme, pois, o problema parece ser o mesmo: a concepção de um sujeito do feminismo unívoco, que não deixa margem para a contradição e a alteridade, para o que, de fora da representação, chega para tensioná-la e desestabilizá-la. Este texto, escrito pelas três singulares mãos femininas e feministas do Júri da crítica de Tiradentes 2018, é uma conversa a partir e com Imo. Mais que isso, é uma conversa com o debate e as referências do cinema feminino e dos feminismos que de modo importante vêm aparecendo cada vez mais (e tomara que mais ainda) no contexto brasileiro contemporâneo. Assim, não se trata de um exercício de crítica singular de um filme, trata-se de uma partilha de reflexão. Entendemos que só conseguiremos amadurecer o debate feminista se investirmos numa ruptura crítica que opere um desvio da matriz essencialista, de modo a questionar, sem descanso, a tentativa de representação de um suposto “universo feminino”.

Desse universo, afinal, já temos representações suficientes. Mulheres em casa, bordando, preparando refeições, se olhando no espelho, mulheres jovens, atraentes, silenciosas, contidas, isoladas, angustiadas, à mercê do apetite masculino, disso tudo já vimos o bastante no cinema, na televisão e na publicidade. Chantal Akerman, certa vez, disse que um filme é feminista não pelo o que mostra, mas por como se mostra.4 Em outras palavras, não basta a boa intenção de filmar mulheres, é preciso refletir sobre como filmar mulheres de modo a não aprisioná-las nas mesmas representações que tanto queremos desconstruir. Foi justamente esse “como” que nos pareceu frágil em Imo: a escolha pelo pastiche de situações e estratégias vindas do cinema experimental e da performance tem seu mérito como exercício de realização, mas não responde à necessidade de abalar ou ampliar as fronteiras da representação da mulher no cinema e as formas de existência das mulheres no mundo. Se a inserção de Imo em um festival como Tiradentes pode ser encarado como uma resposta à demanda por reflexões sobre a presença feminina no cinema brasileiro hoje – na realização, em cena, na crítica – precisamos, urgentemente, reformular perguntas.

Notas:
1 – Tais símbolos são amplamente usados numa iconografia ocidental das artes visuais, como na Vênus de Botticelli e nos diversos quadros com o tema do suicídio da Ofélia ou em filmes mais contemporâneos como Elena (Petra Costa, 2012), Melancolia (Lars Von Trier, 2011). Mesmo numa referência das religiosidades africanas, por exemplo, a água também se associa ao feminino em orixás e entidades como Oxum e Iemanjá.
2 – Berger trata do “olhar masculino” sobre a mulher no segundo capítulo de sua série Modos de ver.
3 – LAURETIS. A tecnologia do gênero. In: HOLLANDA. Tendências e impasses: o feminismo como crítica da cultura. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.
4 – AKERMAN apud LAURETIS. Figures of resistance. Essays in feminist theory. Urbana and Chicago: University of Illinois Press Chicago, 2007, p. 32.
Por Carla Maia, Carol Almeida e Mariana Baltar