“Etéia – A extraterrestre em sua aventura no Rio”, a influência das chanchadas e a evaporação do filme brasileiro

Arthur Autran, em seu importante ensaio Panorama da historiografia do cinema brasileiro, elege quatro grandes fases da historiografia cinematográfica nacional: a proto-história; a historiografia clássica; a historiografia universitária; a nova historiografia universitária. Segundo o autor, são momentos distintos que compõem uma trilha da narrativa histórica do cinema no país. Essa síntese deixa de lado, porém, uma importante faceta constituída no início dos anos 2000. Uma espécie de arqueologia do filme brasileiro que alguns críticos deram especial atenção e vazão por dois fatores: o acesso a inúmeros filmes em videolocadoras e o início da popularização da internet, com a possibilidade de publicar textos em sites e blogs. Assim, era possível assistir e divulgar obras esquecidas pela “história oficial”.

Em entrevista para revista Bravo!, a crítica e pesquisadora Andrea Ormond, responsável pelo resgate de diversas obras brasileiras obliteradas com o tempo, comentou sobre o interesse pelo cinema nacional:

Além do amor pelos filmes de qualquer nacionalidade, sempre achei que o cinema é um elemento muito subestimado na cultura brasileira. Através do cinema podemos traçar um panorama do que foi e continua sendo o país e os costumes da nossa gente. É possível pegar um filme dos anos 1980, por exemplo, e fazer várias pontes com outros acontecimentos da época: a música, a moda, a política. Então meu interesse sobrevive acompanhado de um fascínio maior, pela cultura brasileira, e passou a servir de poderoso instrumental na compreensão e no resgate dessa cultura.

Resgatar os filmes é, portanto, resgatar uma importante parcela cultural brasileira. Mesmo que boa parte da crítica cinematográfica não se importe com essa ideia, pois está preocupada em identificar as novas obras-primas do cinema mundial e exaltando os filmes brasileiros que emulem as ideias extraídas das supostas obras-primas. Etéia – A extraterrestre em sua aventura no Rio (1983), de Roberto Mauro, restaurado há poucos anos e com uma única cópia na Cinemateca do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM/RJ), faz parte desse universo de filmes esquecidos. E ele quase se perdeu, como aconteceu com uma enormidade de obras nacionais. Caso não houvesse o cuidado de restaurar a cópia depositada na Cinemateca, um pedaço do cinema brasileiro poderia evaporar e, junto dele, um retrato de manifestações culturais do país.

Etéia lida com a paródia, uma espécie de subgênero dos filmes cômicos brasileiros, resultado da constante produção desse tipo feita no Brasil. Vale destacar, de início, a relação com a ficção científica que se espalhava pelo cinema americano e fez muito sucesso de bilheteria: Star Wars (1977), de George Lucas; Contatos Imediatos de 3o Grau (1979), de Steven Spielberg; De Volta Para O Futuro (1985), de Robert Zemeckis; Mulher Nota 1000 (1985), de John Hughes, dentre vários outros. Essa relação entre seres humanos e máquina/seres de outros mundos é particularmente importante para o cinema da década de 1980.

Em Etéia, há uma aproximação e subversão da relação com seres humanóides, sejam robóticos, sejam de outras galáxias, como é o caso. Por mais que a extraterrestre tenha vindo ao Brasil de um planeta que fica a três milhões de anos-luz, a tecnologia que ela usa é tosca, não se compara com àquela em E.T – O Extraterrestre, base para a paródia do filme brasileiro. O aparelho utilizado para se comunicar com o seu planeta, por exemplo, parece ter saído da lata de lixo. A nave é, basicamente, a união de pedaços de máquinas velhas, precariamente unidas, que se tornam um artifício cênico.

Essa estética do lixo¹ já estava presente nas chanchadas (e foi exaltada por Rogério Sganzerla e o cinema marginal como um todo) que, em geral, dispunham de um orçamento baixo e dependiam de grande criatividade para improvisar com os instrumentos disponíveis. Etéia é parte de uma continuidade de um cinema popular produzido no Brasil com baixos orçamentos e transforma essa característica em seu trunfo para produzir o humor.

Além disso, essa paródia desmistifica o cinema estrangeiro bem produzido e com efeitos especiais caros e expõe a transparência do cinema clássico. A nave de Etéia lembra bastante a nave espacial de O Bandido da Luz Vermelha (1968), de Rogério Sganzerla que o diretor retirou de um filme B qualquer e enxertou em seu trabalho. Não há nenhum efeito de pós-produção, gerando um tom cômico, inclusive pelo efeito inverossímil do vôo da nave. E esse é o efeito desejado: desde o primeiro momento, provoca o riso e entrega as possibilidades de produção como outra forma de explorar o efeito cômico.

O tom da “estética do lixo” também se estabelece na própria narrativa. As situações vão acontecendo de forma um tanto atabalhoada, sem conexões amarradas entre as sequências. De uma hora para outra, Etéia fica famosa, participa de programas de entrevistas na televisão e chama a atenção de toda a população. Há uma folia “chanchadesca” presente. As piadas não surgem do encadeamento narrativo, o fio condutor que avança os elementos da trama são frágeis, o que importa são as gags no interior do quadro, que permeiam todo o longa-metragem. A corporalidade dos comediantes é muito importante para fazer graça, os movimentos espalhafatosos, quedas e outros exageros são motivo de piadas constantes. A gag não precisa trabalhar em um contexto preciso, “é uma perturbação do discurso ‘normal’, da lógica implícita do filme”.² Algo parecido com o “cinema de atrações”³ que convocava o espectador a participar das situações que surgiam no tableau. É importante lembrar que o primeiro cinema se estabeleceu muito mais pelas sequências cômicas que se concluíam em um mesmo espaço do que em uma linha narrativa visível.

A atrapalhada dupla de policiais (Eliézer Mota e Chaguinha) que compõe o longa é um exemplo claro do humor físico explorado no trabalho de Roberto Mauro. Todos os trejeitos são excessivos, as roupas são chamativas e as piadas se repetem (o chefe de polícia recebe recorrentes trombadas involuntárias de seu subordinado, num desajeito que muito lembra as recepções nada agradáveis de Chaves ao “Seu” Barriga, na vila). Os dois funcionam como uma espécie de releitura de Oscarito e Grande Otelo, maior dupla de cômicos das chanchadas e, consequentemente, do cinema brasileiro. A grande característica de Grande Otelo e Oscarito era a fisicalidade. Lembremos do primeiro carnavalizando uma releitura de uma tragédia grega com passos extremamente rápidos, em Carnaval Atlântida (1952), de José Carlos Burle, ou do segundo se transformado em Melvis Prestes, cantando e dançando Calipso Rock, em De Vento em Popa (1958), de Carlos Manga, provas declaradas da aptidão de ambos para o humor físico.

A dupla de policiais também remete à clássica dupla de cômicos das chanchadas pela questão racial. Um é branco e o outro é negro. Costumeiramente, havia uma subordinação dos negros em relação aos brancos nas comédias. Grande Otelo sempre foi escada de Oscarito, por exemplo. Por mais que esse racismo persista em Etéia, o filme termina com o chefe de polícia, que se transformou em uma criança, levando palmadas na bunda de seu subordinado. Há uma inversão do jogo, como também, vira e mexe, acontecia nas chanchadas.

Outra correlação que se estabelece é a profissão desempenhada pelos personagens cômicos. Se Oscarito e Grande Otelo eram destinados a trabalhar como serventes, barbeiros, cozinheiros, em Etéia, os humoristas atuam como policiais. Entre as décadas de 1950 e 1980, houve uma virada econômica no Brasil e uma parcela da população passou a ter acesso a bens de consumo dos quais estivera apartada por muito tempo. Essa mudança social reconfigura uma classe média que não existia na década de 1950. Em Etéia, a dupla de cômicos tem ocupações pertencentes ao que seria a classe C, um tanto diferente de Oscarito e Grande Otelo, que são os faxineiros do hotel em Carnaval no Fogo (1949), por exemplo.

Etéia – A extraterrestre em sua aventura no Rio também se apropria do espírito chanchadesco para fazer críticas sociais. As chanchadas estavam cheias de comentários sobre a situação do país que passavam “desapercebidas” pela crítica. Há piadas com a Light – fornecedora de energia do Rio de Janeiro – e com hospital Cardoso Fontes, que explicitam a conjuntura precária dos serviços públicos da cidade para a população que não tem condições de pagar pelos mesmos. Em relação ao hospital, é especialmente curioso como nenhum médico tem um comportamento natural, todos parecem estar sob efeitos de lisérgicos, como se essa fosse a única possibilidade para continuar trabalhando na saúde pública.

A relação direta do filme com as chanchadas, porém, é afirmada com a presença de Zezé Macedo como intérprete da extraterrestre. A atriz participou de várias chanchadas e, muitas das vezes, chamava a atenção por não se adequar aos padrões de beleza da época, especialmente por seus lábios extremamente finos. Macedo costumeiramente era lembrada como “feia”. Até a sua personagem mais famosa, a Dona Bela na Escolinha do professor Raimundo, trazia no nome a ironia à suposta (falta de) beleza.

Com a personagem-título, Macedo ressignifica a figura feminina dentro dos filmes de humor brasileiro na década de 1980. Numa fase em que já havia fitas de sexo explícito, Etéia aposta num tom leve, mas que toca em alguns pontos relevantes. A personagem é rejeitada por suas formas, porém logo descobre que pode se transformar em uma mulher dentro dos padrões para ser aceita socialmente. Ela usa seu poder para chamar a atenção dos homens. Em dado momento, Cacau (José Carlos Sanches), o machão clássico das pornochanchadas, leva Etéia, em sua forma humanóide, para casa. Ao descobrir que ela é uma extraterrestre, ele se assusta e sai correndo desesperado. Em sequências posteriores, no entanto, ele aceita o poder da extraterrestre, pois ela pode se transformar em mais de uma mulher linda sempre que quiser.

A relação entre Cacau e Etéia se consolida dessa forma. Ele percebe que pode ter várias vantagens ao lado dela, inclusive ganhar dinheiro. A extraterrestre aceita a amizade de Cacau, sem entender direito o que acontece e se divertindo pelas situações que passa. Entretanto, há uma virada na personalidade de Cacau que passa a defender Etéia das pessoas que querem se aproveitar de seus poderes e da sua figura exótica. O machão da pornochanchada logo se torna um sujeito sensível à personagem ingênua e aos acontecimentos que a gravitam. O comportamento é um tanto incomum comparado às propostas das comédias naquela época, quando, em geral, o homem tentava se dar bem a todo o custo.

Etéia – A extraterrestre em sua aventura no Rio abre diversas possibilidades de análise sobre o Brasil e sobre a produção cinematográfica no país. A relação umbilical com as chanchadas é essencial para entendermos a perenidade do gênero no cinema nacional. No entanto, esteve às vias de desaparecer. Os projetos de restauração no Brasil têm dado ênfase para diretores consagrados como Glauber Rocha, Joaquim Pedro de Andrade, Hugo Carvana, entre outros. Em sua maioria, são cineastas ligados de alguma forma ao Cinema Novo, cânone da cultura cinematográfica brasileira. Embora sejam trabalhos importantes e que justificam esse interesse, é urgente o resgate dos filmes produzidos no país como um todo. Só assim, poderemos reavaliar essas obras estética e socialmente e conseguiremos mais subsídios para entendermos a nossa história. Caso contrário, seremos sempre alienígenas com o nosso passado, enxergando tudo como algo excêntrico. Revalorizar o cinema no Brasil urge para, inclusive, entendermos o nosso presente, seja em relações estéticas, econômicas ou culturais.

Notas:
1 – “a estética do lixo é mais um entre diversos projetos que, de forma geral, reavaliam, pelo caminho da inversão de sentido, aquilo que no discurso colonialista era considerado como negativo. Tais projetos estéticos compartilham, ‘como numa luta de jiu-jitsu, o desejo de transformar a fraqueza estratégica numa força tática’”. VIEIRA, João Luiz. Chanchada e a estética do lixo. Contracampo, Niterói, v. 13, n. 1, p.169-182, jul. 2000.
2 – NACACHE, Jacqueline. O ator de cinema. Lisboa: Texto & Grafia, 2005. 190 p.
3 – The cinema of attractions: early film, its spectator and the avant-garde. In. STRAUVEN, Wanda (org). Cinema of attractions reloaded. Amsterdam University Press, 2006.
Por Lucas Reis