Roteiro audiovisual: escrita e reflexão – Apresentação

Pensar e refletir sobre cinema é uma atividade recorrente desde que essa arte surgiu (Stam, 2003), constituindo, décadas atrás, um campo consolidado de reflexão acadêmica. Reunindo conceitos e perspectivas variadas, a reflexão sobre o audiovisual visa explicar o fenômeno na amplitude de seus elementos, processos e formas de expressão. Podemos localizar neste amplo campo de conhecimento, os Estudos de Roteiros, ou seja, estudos aprofundados sobre a escrita audiovisual. Como nos esclarece Ian W. Mcdonald (2013), fundador da Screenwriting Research Network e uma das principais referências em Estudos de Roteiro, a pesquisa sistemática sobre escrita audiovisual ainda é um ramo relativamente recente que vem aos poucos se estruturando enquanto um campo coeso, ganhando maior notoriedade nos círculos críticos ou acadêmicos. 

Podemos apontar alguns fatores para essa delonga na formação de um domínio do conhecimento a partir do roteiro. Trata-se de um elemento estrutural indispensável para a realização do filme ou série, mas que pode ser deixado de lado logo após sua conclusão, um “documento de passagem” como tantos outros produzidos durante o planejamento. Tal posição intermediária do roteiro colabora para uma abordagem muito mais pragmática que teórica do tema; grande parte das publicações da área é formada por manuais que ensinam a escrever, a vender e institucionalizam o modo ortodoxo de construir narrativas audiovisuais (idem). Contudo, para McDonald (2015), tais particularidades são responsáveis por transformar o roteiro num conteúdo rico para a exploração teórica: o roteiro é, ao mesmo tempo, um processo e um produto, um ponto de encontro entre práticas institucionais e percepções culturais, um espaço para compartilhar uma ideia e fazê-la crescer. Os Estudos de Roteiro apontam para questões de procedimentos artísticos, poéticas da escrita, estilos, representatividade, dentre outras possibilidades para a pesquisa acadêmica. Este dossiê que tivemos o prazer de editar com a Moventes é uma das poucas coletâneas de textos dedicada ao tema no país. 

O dossiê Roteiro audiovisual: escrita e reflexão busca uma perspectiva teórico-analítica, e não apenas prática, da porção literária mais evidente do audiovisual. Esta edição apresenta uma gama de textos que refletem sobre processos criativos, elementos estéticos e convenções narrativas. Composta por autores roteiristas-pesquisadores, o dossiê traz textos que tiveram como ponto de partida apresentações que fizeram parte da programação do III Festival de Roteiro Audiovisual – ROTA, realizado no Rio de Janeiro em outubro de 2019. No festival, os trabalhos se organizaram em torno das mesas “Balbúrdia”, coordenadas por Carolina Amaral e Maria Caú, editoras convidadas para esta edição da Moventes. 

Trata-se de uma tentativa de ampliar o diálogo entre o mercado, o público e o que está sendo produzido na academia sobre roteiro. A publicação busca relações horizontais, tanto com os Estudos de Narrativa quanto com as práticas de escrita audiovisual, e reconhece o roteiro como objeto legítimo e extremamente rico de pesquisa e reflexão.

Nosso primeiro texto, Nuances da escrita do roteiro, assinado por Cristina Gomes, aborda a questão paradigmática do roteiro: por mais que se trate de uma escrita de imagens e sons, são necessárias palavras para descrevê-los. Gomes também questiona o modelo master scene, o mais usado para a escritura de roteiros, e nos apresenta exemplos que vão ao encontro de sua argumentação. A autora tem uma pesquisa (GOMES, 2019) dedicada à escritura do roteiro cinematográfico ficcional brasileiro, observando desde a concepção artística do roteirista, muitas vezes influenciada pela narrativa literária, até a execução artística da direção, condicionada não raramente por procedimentos documentais e/ou performáticos.

Em seguida, Poética do roteiro audiovisual: uma abordagem fenomenológica para narrativas imersivas, de Rafael Leal, questiona o uso subestimado da abordagem fenomenológica nos Estudos de Roteiro e propõe o termo “poética” para análises de composição na escrita audiovisual. O artigo é um desdobramento de sua pesquisa de Doutorado, atualmente em desenvolvimento, abordando o advento da nova geração de narrativas imersivas e o surgimento de novas demandas e possibilidades na  escritura dos roteiros audiovisuais nesse cenário. O objetivo é estabelecer as bases para uma nova Poética do Roteiro Audiovisual, centrada no espectador-interator e em sua experiência.

Já Maria Caú tece indagações sobre a natureza do roteiro e sua ligação com a literatura em Para além do entrelugar: o roteiro audiovisual enquanto gênero literário. Sem responder categoricamente a essa questão, a autora pretende trazer provocações sobre as relações que o roteiro audiovisual pode construir com seus autores, seus múltiplos leitores em potencial e o mercado editorial em que se insere. Assim como o artigo de Leal, o de Caú também é derivado de sua pesquisa de Doutorado (2017).

Carolina Amaral e Érica Ramos Sarmet apresentam textos que fazem a intersecção entre gênero audiovisual e estudos de roteiro. Carolina Amaral, em O espaço-tempo da comédia romântica: o gênero como mapa de leitura e de escrita, desenvolve um estudo teórico por trás da construção de climas e tramas na comédia romântica hollywoodiana. O artigo apresenta, resumidamente, elementos trabalhados em sua tese (AMARAL, 2018), uma investigação teórica e narrativa do gênero e suas convenções.

Érica Ramos Sarmet, por sua vez, entrelaça os estudos de excesso e os estudos de roteiro em Roteiro cinematográfico e as marcas estilísticas do excesso. Para a autora, a estética fílmica não é algo que se dá, exclusivamente, no âmbito da realização, sendo o roteiro capaz não apenas de antecipar o projeto estético do filme, mas de levar a uma experiência estética. O artigo foi desenvolvido a partir de sua tese em andamento, que busca identificar na escrita fílmica – mais especificamente em roteiros de longas-metragens brasileiros contemporâneos que dialogam com o chamado modo de excesso – as formas com que a palavra evoca visualidade, sonoridade e sensação, apontando elementos que seriam, a princípio, apenas do domínio da mise-en-scène

Por fim, em Narrativas não lineares e a estrutura de roteiro em filmes multiplot, Juliana Milheiro traz um estudo sobre filmes com múltiplas tramas, que se desenvolvem concomitantemente e em ordem cronológica. O artigo também representa parte dos estudos desenvolvidos pela autora no Mestrado, cuja temática teórica e prática foi a construção de roteiros não lineares. 

A intenção deste dossiê é reunir pesquisas recentes de diversos vieses sobre o roteiro audiovisual, mostrando a amplitude do pensamento teórico que hoje se volta para este campo. Gostaríamos de contribuir para a consolidação dos Estudos de Roteiro, que, apesar de ter se desenvolvido bastante nas últimas décadas, é ainda incipiente na tradição da Pesquisa em Cinema e Audiovisual no país.

Boa leitura!

Por Carolina Amaral e Maria Castanho Caú

Referências
AMARAL, Carolina. O espaço-tempo da comédia romântica. 2018. Tese (Doutorado em Comunicação) – Universidade Federal Fluminense (UFF), Niterói, 2018. Orientação: Maurício de Bragança. Coorientação: Celestino Deleyto.
CAÚ, Maria. Náufragos no mundo: os escritores e o processo literário no cinema de Woody Allen. 2017. 262f. Tese (Doutorado em Letras (Ciência da Literatura)) – Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), 2017. Orientação: Ronaldo Pereira Lima Lins.
GOMES, CRISTINA. Narrativas à deriva no roteiro cinematográfico brasileiro. 2019. 204 f. Tese (Doutorado em Literatura, Cultura e Contemporaneidade) – Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), 2019. Orientação: Vera Lúcia Follain de Figueiredo. Supervisão: Lúcia Nagib. 
MCDONALD, Ian M. Screenwriting Poetics and the Screen Idea. London and New York: Palgrave Macmillan, 2013. (e-book)
_____________. The Expanding Space of Screenwriting Studies. Palestra ministrada no School of Media and Communication, University of Leeds, em março de 2015. Disponível aqui. Acesso em 20/05/2020.
STAM, Robert. Introdução à teoria do cinema. Campinas: Papirus, 2003.