Em uma das cenas finais de Coringa (2019), dirigido por Todd Phillips, vemos o protagonista se levantando cambaleante e ferido sobre um carro acidentado. O personagem, ainda atônito e deslumbrado frente ao motim conduzido por inúmeros indivíduos insatisfeitos com as condições políticas e sociais de Gotham City, coloca os dedos sobre os lábios e, em seguida, dentro da boca ensangüentada. Ao constatar a ferida, usa o próprio sangue para reforçar a maquiagem de palhaço, contornando a boca. O artefato de usar o seu sangue para cumprir o papel de palhaço já não é metafórico, mas visceral. É o próprio corpo que é gasto, desorientado, alterado. Ao mesmo tempo, esse é o corpo e o indivíduo colocados como símbolos de esperança de uma sociedade decadente, na qual o número de pobres e marginalizados cresce, ao mesmo tempo em que uma pequena parcela social se enriquece e mantém em condições privilegiadas de poder.
A palavra “riso” tem a origem do “latim ‘risus’, de ‘ridere’: rir, mostrar-se alegre, manifestar alegria’. Tem a mesma origem que o Grego ‘rizein’, ‘grunhir, guinchar’” (ORIGEM DAS PALAVRAS, 2019). Considerando essas raízes etimológicas, podemos pensar sempre o riso como algo apto a impactar todo o corpo, tendo em vista que, embora aponte para a manifestação da alegria, é aquilo, também, que deforma e modifica a aparência normal de uma face. No caso de Arthur Fleck, ou Coringa, essa capacidade de alterar uma aparência que seria considerada normal é levada ao extremo. Isso é manifesto no distúrbio que o paciente afirma ser neurológico ao entregar um pequeno cartão plastificado a desconhecidos, cujo texto explica que a expressão em seu rosto – um riso eufórico e descontrolado – não condiz com o que, de fato, ele sente. Entretanto, no decorrer do longa de Phillips, o que é tensionado seria a quem o estado de enfermidade estaria acometendo. Nesse sentido, podemos destacar a cena na qual o protagonista se encontra em um vagão de metrô, quando observa garotos de classe média alta incomodando uma mulher que viaja sozinha com cantadas. Arthur observa a cena, que evolui para o afastamento da garota e para o aumento da agressividade dos jovens, que passam a atingir física e verbalmente o personagem principal, cujo ataque de riso começa de modo incontrolável – aspecto característico do transtorno do protagonista. Durante o ataque, um dos garotos se aproxima muito do rosto do personagem principal, pega a sua peruca de palhaço e, de forma lívida, começa a rir de modo descontrolado e maldoso ao lado de Arthur. À primeira vista, o riso desse garoto de classe média visaria repetir a gargalhada do protagonista, que, minutos antes, começara a rir de forma intensa e sem controle. Entretanto, impulsionado por vontade e escolha, o riso do jovem rico é a gargalhada da barbaridade. É o prazer sombrio daqueles que escolhem oprimir determinados indivíduos devido ao seu gênero, a sua classe, a sua condição social ou a sua diferença. Em contrapartida, o distúrbio de Arthur parece sobressair em circunstâncias em que as pessoas ao seu redor padecem de respeito e de compaixão pelo próximo. Podemos notar isso, também, quando uma mulher o repreende dentro de um ônibus porque ele está brincando com o filho dela, desconsiderando o fato que o garoto está se divertindo, mas agindo devido à aparência incomum de Arthur. Assim, percebemos que o riso de Arthur com o desconforto causado pela carência de humanidade e respeito nessas relações não emerge como riso de deboche ou de ironia: é o rasgo no rosto provocado por pavor e por desespero. É o riso que aponta para a carência de lucidez antes no outro do que em si.
Em Coringa, a possibilidade de distúrbios mentais e neurológicos afeta, também, não só o protagonista, mas a sua mãe, Penny Fleck, que, em idade idosa, escreve cartas não respondidas a um antigo amante, Thomas Wayne – um rico empresário e proprietário de uma multinacional. E é sintomático pensar que, nos momentos de delírio e sonho, Penny e Arthur vislumbrem a inclusão nos espaços cobiçados de poder, de fama e de visibilidade. Não por acaso, Arthur sonha em participar de programas de televisão e a mãe almeja que o provável candidato à prefeitura da cidade a reconheça e acolha-a. O desejo de Penny na velhice vai de encontro àquele da juventude, época quando foi diagnosticada com psicose por médicos e acusada de agredir o filho adotivo, ao mesmo tempo em que dizia ser Wayne o pai do garoto. Nesses dois casos, o desenvolvimento de uma doença está intimamente relacionado com o contexto socioeconômico em que eles vivem. Tanto Penny quanto Arthur sofreram com dificuldades de exploração exacerbada e condições insalubres em seus trabalhos – baixa remuneração, chefes agressivos, poucas oportunidades de ascensão em seus postos de serviço, dentre outros fatores -, ao mesmo tempo em que possuem parco amparo do Estado para poderem ter acesso a oportunidades de estudo e formação a fim de alterar esse cenário. E, nos momentos de desequilíbrio fisiológico de ambos os personagens, o que sobressai neles é, também, o sonho de inclusão social e de respeito. Em ambos, evidencia-se o sonho primário de apagamento das desigualdades sociais. E, ao mesmo tempo, o quanto o culto à felicidade inesgotável e à necessidade de se expor a alguma audiência esse estado de ânimo tem, em si, algo de patológico.
No mundo contemporâneo, esse culto intenso ao hedonismo, à produtividade ininterrupta e à impossibilidade de demonstrar fragilidade é acompanhado, inexoravelmente, de um estado de exaustão, em que quaisquer fraquezas, cansaços ou tristezas são abominados. Gotham não é uma cidade isolada ou distanciada da realidade do mundo contemporâneo. Recentemente, a jornalista e escritora Eliane Brum escreveu para o jornal El país um artigo intitulado Doente de Brasil. No texto, ela relata o crescente aumento de doenças psicossociais no Brasil, relacionando-o com a gestão do governo Bolsonaro, a qual tem sido responsável por reduzir diversos investimentos e direitos sociais, além de flexibilizar leis trabalhistas que possibilitam uma exploração mais intensa dos trabalhadores no país. A autora retoma um relato do médico psiquiatra Fernando Tenório, o qual afirma:
Acabei de atender a um homem de 45 anos, negro, sem escolaridade. Nos últimos cinco anos, viu seus colegas de setor serem demitidos um a um e ele passou a acumular as funções de todos. Disse-me que nem reclamou por medo de ser o próximo da fila. Tem sintomas de esgotamento que descambam para ansiedade. Qual o diagnóstico para isso? Brasil. Adoeceu de Brasil. Se eu tivesse algum poder iria sugerir ao DSM (o manual de transtornos mentais da psiquiatria) esse novo diagnóstico. Adoecer de Brasil é a mais prevalente das doenças. Entrei agora na Internet e vi que a reforma da previdência corre para ser aprovada sem sustos. O povo, adoecido de Brasil, permanece inerte. Vai trabalhar sem direito a aposentadoria até morrer de Brasil (BRUM, 2019).
Esse depoimento de Tenório aponta para algo explicitado em Coringa: o modo pelo qual as condições políticas e sociais são aptas a adoecerem alguém. Não por acaso, o acontecimento quase acidental de Coringa se tornar um símbolo para aqueles que se sentem insatisfeitos com o governo de Gotham City e, por isso, saem às ruas mascarados de palhaço ganha proporções gigantescas rapidamente. O mal-estar com uma sociedade que deseja massacrar subjetividades e produzir de modo exaustivo a fim de alcançar o máximo lucro se espalha de forma alucinante. Ele tem, de alguma maneira, um caráter epidêmico. No decorrer do texto de Brum, a jornalista escreve, também, que Tenório destacou seu próprio mal-estar, considerando-se um “traficante de drogas legais” (BRUM, 2019), uma vez que estaria receitando diversos medicamentos para os indivíduos em sofrimento mental. No entanto, o médico destacou que ao “dar medicamentos, estava tornando essa pessoa apta a sofrer mais, porque a jogava de volta ao trabalho” (BRUM, 2019).
O desabafo do psiquiatra Tenório aproxima-se da própria queixa de Arthur, quando, em uma consulta com uma assistente social do governo, queixa-se que os medicamentos por eles ingeridos não fazem efeito, tendo em vista o fato da assistente, na perspectiva dele, não o escutar verdadeiramente. Ou seja, o protagonista se queixa de uma certa indiferença com a sua subjetividade, a qual estaria tendo menos atenção que as drogas por ele ingeridas. O adoecimento mental e a sensação de esgotamento de Arthur caminham, também, com a percepção do próprio personagem da crescente mercantilização da vida. Nesse sentido, o personagem escreve em uma espécie de diário em que registra pensamentos: “espero que a minha morte valha mais que a minha vida”. Assim, até mesmo a morte, o que, de algum modo, deveria ser colocada como antagonista – ou solução – aos problemas e opressões da vida, é encarada como ultimato para que, enfim, haja o reconhecimento de toda uma existência.
Em Coringa, acompanhamos o surgimento de um movimento político que se, por um lado, ganha as ruas com o ímpeto de destruir a cidade, é, por outro lado, encontrado como alternativa para que a vida e a subjetividade daquelas pessoas possam prevalecer. Coringa, ao se deter na vida de alguém estigmatizado com sinais patológicos, mas que ama, chora e sofre como qualquer um de nós, revela que, pensando melhor, talvez ele não seja tão diferente assim dos outros indivíduos. O risco de adoecimento mental em um sistema capitalista não é pequeno ou inusitado. Em Coringa, não há o exótico. Muito pelo contrário, a máscara do palhaço que é comprada rapidamente aponta para algo que pode ser compartilhado massivamente. Coringa não é um estigma social, mas, em tempos de desespero e tristeza, algo que pode ser, cada vez mais, comum e compartilhável.
Referências: