Vamos acabar com o cocô do Brasil. O cocô é essa raça de corruptos e comunistas.
Jair Bolsonaro, agosto de 2019
Eu tenho tanta obsessão de desmascarar o Moro, de desmascarar o Dallagnol e a sua turma, (…) que eu ficarei preso cem anos, mas eu não trocarei a minha dignidade pela minha liberdade.
Lula, abril de 2019¹
O audiovisual tem servido, nos últimos anos, como principal ferramenta de acesso do povo brasileiro aos acontecimentos políticos do país. Seja por pronunciamentos oficiais ou vazamentos ilegais de imagens e sons, acompanhamos as histórias vividas por ministros, juízes, presidentes e afins através de suas performances diante das câmeras, em vídeos que se espalham pelas inúmeras telas que nos rodeiam. Dentre as narrativas, a Operação Lava-Jato se destaca como uma das mais duradouras e controversas.
Neste artigo, analisaremos duas mega-produções ficcionais que reconstituem momentos emblemáticos dessa operação (ainda em andamento) e que alcançaram relativo sucesso de público. Polícia Federal – A Lei é Para Todos, longa dirigido por Marcelo Antunez, tornou-se o filme nacional campeão de bilheteria nos cinemas brasileiros em 2017, com 1,2 milhão de espectadores, e O Mecanismo, série criada por José Padilha e Elena Soarez para a Netflix, foi lançada em março de 2018 e, devido ao bom desempenho, ganhou uma segunda temporada em maio de 2019. Ambas adaptam os mesmos fatos históricos e efetuam, cada uma à sua maneira, modificações e distorções – procedimentos comuns nesse tipo de narrativa. Nosso foco, aqui, não será o de buscar comparações entre os acontecimentos reais e suas versões ficcionalizadas.² Ao invés disso, atentaremos à maneira como essas duas obras de origens e formatos tão distintos se utilizam de recursos tão parecidos para reforçar visões de mundo reacionárias, corroborando com um senso comum de atuação heróica dos agentes da Lava-Jato e, de quebra, esvaziando qualquer possibilidade de participação popular no campo político de seus universos diegéticos.
Ritos de ordem e progresso
Ao se debruçar sobre os arquétipos e convenções do cinema hollywoodiano, o teórico Thomas Schatz engloba os filmes policiais, de gângster e de faroeste no que chama de gêneros de ordem. O autor identifica os seguintes traços em comum nessas narrativas: cada história retrata “um mundo em equilíbrio precário, onde as forças de civilização e barbárie travam uma luta pela supremacia.” (SCHATZ, 1981, p. 47) Os conflitos estão geralmente relacionados à disputa de espaços determinados, territórios físicos, e para serem resolvidos, precisam de algum tipo de violência.
Proponho o exercício de nos aproximarmos de nossos objetos através da moldura desses gêneros de ordem. Elas apresentam um Brasil dominado por forças malignas que se entranharam profundamente em seu sistema político e atuam como parasitas, sugando o dinheiro público. Trata-se de uma rede de mafiosos que vive frivolamente às custas de bens extraviados da sociedade, ostentando estilos de vida luxuosos e luxuriosos, ocupando mansões em terrenos amplos, coberturas com vista para todo o “reino” que dominam, dirigindo carros importados… E todos têm a certeza da impunidade. Quando ameaçados, debocham da ação policial, como Ricky (Caio Junqueira), que queima documentos comprometedores de seu sogro, o ex-diretor da Petrobrasil/Petrobras em O Mecanismo e ainda diz: “Fica tranquilo, sogrão. Agora eles não vão ter mais nada contra a gente. Eu confio na justiça.” (T1,E3) Ou seja, no status quo dessas narrativas, a justiça está a serviço dos mafiosos, que são pessoas de índole essencialmente má, como afirma a policial honesta Verena (Caroline Abras) sobre o doleiro arqui-vilão Ibrahim/Youssef (Enrique Diaz): “O Ibrahim é do crime. Ele sempre vai ser do crime. Não existe acordo com essa gente, não.”
Entender a Operação Lava-Jato como um rito de ordem nos ajuda a pensar na ideologia que embasa tais projetos. Segundo Schatz, o faroeste é um rito de fundação da América e “projeta uma visão formalizada das infinitas possibilidades da nação, servindo para naturalizar as políticas de expansão rumo Oeste e o Destino Manifesto.” (SCHATZ, idem, p. 47) De modo análogo, a Lava-Jato funcionaria, em O Mecanismo e Polícia Federal, como um processo de lavagem completa do Brasil, cuja finalidade seria erradicar os parasitas de nossa nação (no caso, praticamente toda a classe política), implementando um ideal de justiça e preparando o terreno para o tão sonhado progresso, com uma nova sociedade burguesa a se instalar e assumir o poder.
Para isso, é necessário um herói civilizador. As obras em questão aderem a uma tendência audiovisual contemporânea de fragmentar o herói em um coletivo, quase como uma família, conforme analisa François Jost em Do que as séries americanas são sintoma? (2012). Temos, então, um grupo de agentes da lei que precisa se dedicar à missão civilizatória, abrindo mão de suas vidas pessoais e investindo suas relações afetivas entre seus colegas de trabalho. Sua missão: combater o mal e libertar o Brasil da corrupção. Uma tarefa nada fácil. A Operação Lava-Jato, nessas obras, é narrada como um evento transformador, um marco com proporções inigualáveis. “É o Juízo Final / A história do Bem e do Mal / Quero ter olhos pra ver / A maldade desaparecer”, canta Nelson Cavaquinho enquanto vemos os policiais prendendo os empreiteiros no final da primeira temporada de O Mecanismo (T1,E8).
Os heróis até tentam desistir de suas missões, mas não conseguem, estão destinados a cumpri-las. Há um chamado que os puxa de volta. Como diz Ruffo (Selton Mello) para Verena no final da série (T2,E8): “a gente não escolhe o que a gente faz.” Ou o diálogo no longa de Antunez, em que Beatriz (Flávia Alessandra) pergunta “Por que a gente faz isso?”, e Júlio (Bruce Gomlevsky) retruca: “Endorfina!” Todos eles sentem um prazer inexplicável naquele trabalho, mesmo com todos os prejuízos e dificuldades. Estão a serviço de uma necessidade superior. Vale notar que esses policiais operam primordialmente por meio de investigações, apelando para o tiroteio (teoricamente) em último caso. Seu foco é fazer emergir a verdade, lançar luz nas trevas, para conseguir incriminar os poderosos vilões que se apoderaram do país e arrastá-los para o lugar onde deveriam realmente estar: atrás das grades. Aí, sim, findará a corrupção no Brasil. Pelo menos é o que acreditam.
Verdade(s) em disputa
Em ambas as narrativas, o espectador passa a acompanhar as etapas da investigação, as ideias, os erros e acertos, e parte da atração consiste em presenciar os heróis descobrindo a Verdade. É como se, agora, tivéssemos acesso aos bastidores de fatos amplamente conhecidos e midiatizados, e pudéssemos conhecer os detalhes e motivações por trás de cada ação. As obras assumem um caráter pedagógico e almejam preencher o desejo de saber, a libido cognoscendi dos espectadores (JOST, idem, p. 45).
Seguindo esse caminho, há uma forte utilização do recurso da voz over para dar estofo à dimensão didática nesses trabalhos. Tanto a voz de Ruffo em O Mecanismo (e a de Verena, em alguns episódios) quanto a de Ivan (Antonio Calloni) em Polícia Federal exercem a mesmíssima função que a da maioria dos protagonistas de ficções policiais: completar informações sobre os acontecimentos não vistos, interrelacionar ações, mas também exprimir sentimentos, emoções ou verdades gerais (JOST, idem, p. 50). No caso do longa, há até mesmo videografismos e desenhos para auxiliar as explicações e não deixar qualquer espaço para dúvidas. Esse impulso pedagógico se confirma em declarações das equipes de ambas as obras, seja na fala de Flávia Alessandra, dizendo que o filme é uma forma dos jovens aprenderem e conhecerem a história, ou na entrevista em que Padilha corrobora tudo aquilo que seu protagonista fala na voz over e ainda completa: “Precisamos educar os brasileiros sobre o que está acontecendo.”
Como almejam ocupar essa função educativa, as duas obras recorrem a cartelas para se legitimar. No caso da série, há o amparo de um livro: “Baseado na obra ‘Lava-Jato – o juiz Sérgio Moro e os bastidores da operação que abalou o Brasil’, de Vladimir Netto.” Já o longa abre com uma cartela menos objetiva e mais presunçosa: “Esta é uma obra cinematográfica baseada em fatos reais de inegável interesse público e de grande repercussão na imprensa e meios de comunicação em geral, bem como inspirada em obra literária de caráter documental e histórico, que se utilizou de pesquisa jornalística, fundamentando-se em documentos públicos e oficiais.” Quais são esses documentos, não se sabe. Só resta ao espectador acreditar neles e na maneira supostamente imparcial que a narrativa será conduzida.
Com isso, os projetos aqui analisados mesclam realidade e ficção, reorganizando o mundo de acordo com suas perspectivas para provar o que consideram a Verdade. No longa, os nomes dos personagens são mantidos de acordo com a realidade extra-fílmica e há uma predominância da reencenação de fatos célebres da operação, baseadas em imagens de arquivo para alcançar uma semelhança (algumas dessas imagens aparecem nos créditos finais). Somadas a essas cenas, há algumas claramente inventadas (como situações domésticas, de intimidade entre os personagens) e outras, mais complexas, que incorporam fragmentos documentais à imagem fílmica, seja de som ou vídeo. Isso acontece em momentos específicos, geralmente envolvendo políticos do PT, e visa conferir credibilidade ao discurso que vinha sendo construído pela ficção, sem propor qualquer tipo de desestabilização por meio do choque desses materiais de naturezas distintas. Ao contrário, ocorre uma cooptação do real pela tessitura fílmica tendenciosa de Polícia Federal, quase como se as imagens “verdadeiras” fossem uns bordados nesse tecido, criando um relevo decorativo em seu inabalável discurso.
A série é um pouco mais cautelosa: alterou os nomes dos personagens e empresas (manteve os dos partidos) e não incorporou imagens documentais à narrativa em si. Porém, a vinheta de abertura da segunda temporada é uma compilação de imagens de arquivo repleta de deboche e escárnio. Vemos presidentes da república de diferentes partidos, assim como políticos e empresários investigados pela Lava-Jato com seus rostos parcialmente borrados com pixels, enquanto toca o samba Reunião de Bacana: “Se gritar pega ladrão / Não fica um, meu irmão.” A montagem é uma grande ridicularização da classe política e a materialização da máxima de que são todos “farinha do mesmo saco,” igualmente bandidos e corruptos. Com este recurso, Padilha e Soarez se aproximam da postura de Antunez, ao trazer acriticamente conteúdos documentais para ilustrar uma tese e apenas reforçar sua validade perante o mundo real.
Torcida de reféns
Para tecer seus discursos reacionários, ambas as obras incorporam também vozes dissonantes, situadas à esquerda, com o fim de esvaziá-las. Por exemplo, o policial Vander (Jonathan Haagensen) de O Mecanismo, um jovem negro de família petista, é escalado para prender o ex-presidente Gino/Lula (Arthur Khol) no penúltimo episódio (T2,E7). Vander, que faz questão de chamar Gino de “presidente,” claramente se constrange diante daquele homem que tanto admira, mas precisa cumprir o que a instituição ordena, fazendo-o com grande pesar, em uma das sequências dramaticamente mais potentes de toda a série. Naquela troca de olhares entre os pares, são constatadas diversas derrotas: de Vander, por ter que exercer o papel de algoz e por, no fundo, começar a desconfiar da honestidade de seu eterno “presidente”; e de Gino, por encarar de frente a frustração de um antigo eleitor e por ter de se entregar ao tal mecanismo que paira acima deles, sufocando sonhos e ideais. No Brasil dessa série, não há luz no fim do túnel: se a esquerda algum dia representou uma possibilidade de mudança social, ela já faliu e revelou sua verdadeira face (a da corrupção) e é justamente um policial (ex-)petista quem vai prender o Lula ficcional.
Polícia Federal é ainda mais explícito em seu esforço de implosão dos argumentos à esquerda. Os personagens principais negam qualquer desejo de influenciar a vida política, alegando ser apenas uma coincidência o fato do PT ser investigado às vésperas das eleições. Uma repórter revoltada os contesta, mas é rapidamente rotulada de “maluca” e descartada pelos policiais e pela encenação como um todo. Em outra cena, descobrimos que Júlio e sua família fizeram campanha para o PT, só que agora o policial está desiludido e deseja a prisão de Lula. Seu pai tenta travar um debate, mas Júlio possui os melhores argumentos e passamos o filme acompanhando suas “descobertas” no trabalho: ao espectador, não há espaço-tempo narrativo para duvidar da operação, somos induzidos a concordar com Júlio. Além disso, Ary Fontoura constrói um Lula excessivamente arrogante, irritadiço, e com ares vilanescos (o que difere do Gino/Lula mais nuançado de Khol), chegando ao ponto de ameaçar os policiais em sua última aparição: “Quando eu voltar a ser presidente, vou me lembrar de cada um de vocês.”
No decorrer da história, não há oportunidade, tampouco, para explorar as contradições da Polícia Federal, nem do funcionamento da Lava-Jato – há apenas uma breve passagem indicando que alguns funcionários prepararam e venderam dossiês inventando histórias para incriminar a operação, mas isso é colocado como algo pontual e facilmente contornado. A instituição é mais forte e está alinhada aos interesses públicos, comprometida com o povo brasileiro. Ou seja, o longa não não tem qualquer pudor em se colocar como uma espécie de filme institucional da PF.
Isso aparece no discurso final de Ivan, unindo cinicamente o povo e os heróis na mesma primeira pessoa do plural: “Nosso trabalho tá só começando,” diz ele. Para este narrador, as manifestações populares nas ruas e os resultados de eleições operam como reflexos quase diretos do aparecimento da Verdade – esta, revelada pelos órgãos da lei e da ordem. Ivan sorri, esperançoso, enquanto assiste a imagens documentais de protestos verde e amarelos (com direito a boneco gigante de Lula presidiário) intercalados com protestos vermelhos, estes mais tímidos. O personagem tem certeza de que conseguirá livrar o país da corrupção, mas não há qualquer elaboração crítica a respeito daquelas imagens. Elas fincam o filme no real e funcionam como comprovações documentais de que a jornada daqueles heróis possui impacto na sociedade extra-fílmica, a ponto de mover multidões. Em seguida, surgem cartelas apresentando dados numéricos sobre a Lava-Jato, confirmando sua magnitude e relevância para o país. De fato, são números impressionantes. Porém, fica a questão: se a corrupção está tão arraigada no Brasil, onde vai parar esse “nosso trabalho”? Se nós, cidadãos, estamos juntos do coletivo de heróis que representam figuras públicas como Sérgio Moro e Deltan Dallagnol, supostamente trabalhando para “melhorar o país um pouco” (palavras deles), o filme aponta para uma aliança entre esses agentes como solução ao problema estrutural enfrentado pela nação. Esquerda e direita, vermelhos e verde-e-amarelos, todos unidos no rito de ordem da Operação Lava-Jato, rumo a um futuro livre de corrupção. Polícia Federal encerra com uma citação do Ministro do STF Luís Roberto Barroso, afirmando que “O Brasil já mudou e nada será como antes.”
Tal qual os indícios da realidade extra-fílmica são incorporados às imagens ficcionais do longa, os personagens reais também foram convidados a se misturar ao público na sessão de estreia, como podemos ver nos registros do evento. Os cidadãos de bem e seus heróis salvadores sentaram-se confortavelmente na mesma plateia de um cinema multiplex para prestigiar a obra que celebra essa promissora aliança. Levando em conta o resultado das eleições de 2018 (ocorridas um ano após o lançamento do filme) e toda a campanha bolsonarista, Polícia Federal, de certa forma, prevê os rumos políticos que o país viria a tomar, sem nunca citar o PSL ou representar a família que atualmente governa o Brasil.
Por sua vez, a série criada por Padilha e Soarez aponta para um futuro mais sombrio. No episódio O fim e os meios (T2,E7), há um diálogo entre Ruffo e Regina (Susana Ribeiro), em que ambos concordam que o impeachment da presidenta Janete/Dilma é absurdo. Regina diz que vai às ruas protestar. Ruffo não comenta nada na hora, mas sua postura e seu discurso em voz over ao longo de toda a série inferem que aquilo não terá qualquer efeito. E isso é confirmado alguns minutos depois, quando vemos o povo se engalfinhando como torcedores fanáticos (metáfora reiterada pelo ex-presidente ao falar do Corinthians e sua torcida fiel) na porta do aeroporto de Congonhas enquanto Gino depõe à PF. Nos fundos, no andar inferior, está o que verdadeiramente importa: a polícia levando o ex-presidente embora, em um carro preto. Esse plano condensa o discurso da série: na superfície, o povo gastando sua energia numa inócua briga de torcida; embaixo, às escondidas, políticos e agentes da Lava-Jato trabalhando para decidir os rumos do país. Naquele universo, não existe espaço para o povo porque a estrutura narrativa não foi construída de forma a incluí-lo enquanto possível agente – é apenas um personagem coadjuvante, blocado e alheio à saga dos heróis e vilões.
Diferente de Polícia Federal, não há em O Mecanismo um grande entusiasmo com as instituições públicas: há uma sensação de descrença, de impotência. Não se pode confiar na justiça, e sim nos nossos heróis solitários, honestos e íntegros. Eles são poucos, mas são bravos na luta contra o sistema. A voz over de Ruffo não vê qualquer horizonte de mudança efetiva na sociedade, apenas pequenas vitórias, e a série proporciona ao espectador uma “revanche em relação às instituições que o dominam,” como afirma Jost sobre as séries policiais americanas (idem, p. 68). Esse tipo de narrativa audiovisual forneceria uma consolação, “uma compensação simbólica” (idem, p. 69) a um povo que não tem qualquer possibilidade de influenciar os rumos de sua própria história política e deve assistir ao desenrolar do jogo de cartas marcadas como se assistisse a uma partida de futebol.
Para pensarmos os rumos apontados pela série, vejamos também o que reflete Schatz a respeito dos detetives nos ritos de ordem urbanos: “suas ações podem resolver alguns conflitos sociais imediatos, mas a comunidade propriamente dita permanece basicamente a mesma, sem mudanças efetivas. (…) tudo o que o detetive pode fazer é seguir seus instintos de sobrevivência e permitir que o tempo corra seu curso inevitável.” (SCHATZ, idem, p. 129-130) E é assim que Verena e Vander terminam a segunda temporada, passeando de moto pela noite de Curitiba: juntos, abraçados, vulneráveis, mas seguindo adiante, determinados em sua missão heróica de salvar a sociedade que habita aquela terra, livrando-a das forças malignas que ainda sobrevivem e se multiplicam como um câncer. Todavia, no fundo, eles sabem que aquela é uma guerra sem fim. Eles podem até resolver conflitos sociais imediatos, mas há um curso inevitável do tempo, algo muito maior que, se nem aqueles heróis conseguem impedir, muito menos conseguiremos nós, reles cidadãos comuns.
Então é isso? Estamos relegados ao papel de espectadores passivos de uma desgraça anunciada, torcendo para que – talvez – umas figuras míticas nos salvem das trevas? No fim das contas, embora Padilha e Soarez se posicionem publicamente contra Moro e Bolsonaro, a estrutura narrativa da série aponta para uma maneira de lidar com o dilema nacional que pouco difere daquela apresentada pela extrema-direita: a de heróis salvadores, mitos. No mundo extra-diegético (este em que vivemos), o “mito” já tomou o poder e agora se volta contra o povo, como atesta Eliane Brum: “As pessoas, hoje, não sabem como reagir à quebra do pacto civilizatório representada pela eleição de uma figura violenta como Bolsonaro (…), percebem que já não podem contar com as instituições – constatação gravíssima para a vida em sociedade. E então passam a sentir-se como reféns – e, seguidamente, a atuar como reféns.”
Que efeitos será que obras como O Mecanismo têm sobre este povo que hoje se sente refém? Como poderíamos sair do estado de revolta conformada? Se o audiovisual pode atuar como potência disruptiva, criando fendas no imaginário já consolidado pela mídia hegemônica e reinventando nossa forma de perceber o mundo, isso não é sequer cogitado por esses projetos. Pelo contrário, reforçam as engrenagens que operam no Brasil desde 1500.
Por Vitor Medeiros
Bem, vou fazer esse comentário aqui por achar mais passível de debate, ainda que Bacurau pareça o tema principal, acredito que entrecruzar os textos seja parte do objetivo desse dossiê. Nesse sentido, Bacurau se relaciona com uma citação feita nesse texto, quando François Jost enxerga essa figura contemporânea de herói em coletivos que agem quase como famílias, essa descrição cabe perfeitamente ao povo de Bacurau, que quase como família age em conjuento sem muitas contradições ainda que existam a “tia” que aparece bebada na hora errada, o “sobrinho” afastado por mau comportamento e a morte de uma espécie de matriarca. Nessa família vemos a ponderação dos sábios do grupo e, finalmente, a superação de qualquer diferença no sentido de vencer as adversidades. É claro que essa caracterísitca não constitui um defeito, mas busquei apontar o caráter familiar desse grande herói coletivo (coletividade que por alguns comentários é apontada como razão para o raso desenvolvimento dos personagens: o protagonista é a vilã), que parece garantir, como no exercício da coletividade policial, o sucesso da ação do filme. O exercício bem sucedido dessa coletividade vem sendo bastante lembrado em textos e críticas, seja como exemplo, seja por sua irrealidade. Me interesso no uso desse recurso e na sua relação com certas fórmulas do contemporâneo. Esse é o primeiro ponto. O segundo ponto diz respeito a construção da vilania, ou mais precisamente, da própria distopia no filme. Parece ponto comum que uma das forças do filme está em apontar um futuro próximo entendido como consequencia direta da ascenção das forças que hoje governam o país. Não há o que negar no fato de que essas forças dão os argumentos pra que se pinte o quadro que o filme apresenta, por outro lado é inegável também que falar em execuções públicas no Anhangabaú ou no uso da terminologia Brasil do Sul são exercícios de imaginação do filme, fatores que dependem muito mais dos autores do que de vestígios da realidade, por mais que não soem tão absurdos nas mentes daqueles que, com toda razão, se opõem ao bolsonarismo. É evidente que a ficção permite aos realizadores vincular esse legado ao bolsonarismo, mas se parte da força do filme reside nessa associação entre presente e consequencias do futuro me pergunto se o recurso difere tanto do que aqui nesse texto sobre o Polícia Federal e O Mecanismo e no fim apenas “Apresentam um Brasil [no futuro, por consequencia direta do nosso presente] dominado por forças malignas que se entranharam profundamente em seu sistema político e atuam como parasitas”. Não sei se me faço entender mas não é incomum que no discurso reacionário exista certa certeza de que a corrupção é a causa para os males do país, da mesma forma que há essa certeza de nascimento de uma distopia na leitura que a esquerda faz do bolsonarismo. As duas percepções não se equivalem, eu sei exatamente de que lado estou, mas não é estranho que ambas se estruturem narrativamente de forma tão parecida? Por fim, o terceiro ponto tem bem menos proximidade com esse texto, mas diz respeito ao que representam as 6 obras citadas nos dois textos em relação ao posicionamento de seus imaginários. Bastardos Ingl´orios, Distrito 9 e Avatar operam a ficção de maneiras bastante evidentes: mudança no fluir da história, alienígenas na terra e toda uma civilização imaginária (ainda que os filmes sejam muito diferentes, seja no possível caráter alegórico, seja no posicionamento da crítica social). Nesse sentido, se opõem bastante ao exercício de O Mecanismo e Policia Federal, que se ancoram no calor dos acontecimentos, exploram referencias “documentais” e se afirmam “baseadas em fatos reais”, guardando fácil relação entre personagens e acontecimentos dos filmes e do noticiário diário. Ainda que ambos os campos passem por sentimentos e percepções do mundo extra diegético a ambientação e a diegese propostas os afastam. Não é questão de debater qual caminho é ideal, particularmente não sou grande defensor de nenhuma dessas obras, mas de perguntar em qual desses campos está Bacurau? A opção por se situar no futuro concede ao filme grande liberdade criativa, como nas obras estrangeiras, por outro lado a questão daquela distopia como algo já em exercício no presente não reaproxima Bacurau das obras brasileiras? Essas questões pretendem tão somento colocar certos pontos que eu julgo problemáticos na construção de Bacurau e que muitas vezes parecem ser ignorados por um olhar otimista e benevolente de algumas críticas. Encontrei aqui no texto sobre Mecanismo e Polícia Federal certa incisividade que falta em críticas a Bacurau (faço questão de ignorar críticas reacionárias e que na minha opinião focaram no pontos errados para questionar o filme), por isso busquei elementos dessa incisividade para aplicar ao filme, Bacurau também não parece uma fábula esquerdista? Abraço
Oi Zé Luiz, agradecemos seu comentário crítico relacionando os artigos do dossiê! Para nós, é uma alegria saber que o dossiê pode estimular debates para além dos textos. Um abraço, equipe moventes.